João Coutinho é diretor criativo da agência de publicidade Grey, em Nova Iorque, e antes esteve na Ogilvy, em São Paulo. Está fora de Portugal há quatro anos.
O que é que sente de diferente em Portugal, tendo em conta que não vinha cá há um ano e meio?
Senti-o principalmente no Porto, que teve a mesma transformação no turismo que Lisboa já teve, ao tornar-se numa cidade 100% virada para os turistas. Notei também alguma inquietude das pessoas em relação à situação da Grécia, mas menos pessimismo. Se calhar, as pessoas já se habituaram a viver com a crise ou encaram-na de forma mais leve.
Mas continuamos em crise…
Mesmo com a crise e a austeridade, Portugal tem uma alta qualidade de vida. Em São Paulo tinha zero qualidade de vida, demorava duas horas de carro para fazer oito quilómetros da agência para casa, da Marginal Pinheiros para a avenida Paulista. Havia semanas em que não via os meus filhos. Quando saía, de manhã, eles estavam a dormir e quando voltava eles já estavam deitados.
A diferença no salário no final do mês não pesa?
Não poupei dinheiro nenhum no Brasil, porque as coisas são muito caras. Mesmo nos Estados Unidos, tenho um bom salário mas as coisas são muito caras. Ganha-se muito, mas gasta-se muito. Os meus filhos só podem ir para a escola pública com quatro anos, ainda só têm três, vão a uma escola privada. Para irem três vezes por semana, duas horas, pago 1400 dólares por cada um, mais quatro mil dólares de renda por um apartamento de 70 metros quadrados.
Saiu de Portugal em 2011, em pleno resgate da troika. Saiu do país por causa da crise?
Não. Quando foi o resgate, já sabia que iria para o Brasil. Já tinha vivido em Madrid três anos, a trabalhar na Young&Rubicam, entre 1999 e 2002, e fiquei com vontade de voltar a ir para fora.
Como é que surgiu essa oportunidade?
Estava lá outro português, o Frederico Saldanha, que é meu amigo, pois trabalhámos juntos quando ele era sócio do Edson (Athayde), e conhecia o Anselmo, que era o vice-presidente da Ogilvy em São Paulo. Estava na Lowe e gostava de estar lá, mas depois a agência foi comprada pela Ativism e as coisas não correram muito bem. Ganhava bem, era respeitado e trabalhava com pessoas de quem gostava, mas nunca tinha ganho um Leão (troféu do Festival Internacional de Criatividade de Cannes). Quis ir atrás dos prémios e o Brasil estava a atravessar nessa altura um boom económico.
O primeiro Leão que ganhou foi no Brasil?
Sim, em 2013, com a campanha Adeptos Imortais, para incrementar a doação de órgãos, para o Sport Clube do Recife. Foi um Grande Prémio de Promo Activation, ganhou quatro Leões de ouro, um de prata e um de bronze e mais outro Leão de bronze com uma campanha de outdoor para um canal de televisão, a Band Sports.
Este ano em Cannes, Portugal ganhou mais Leões com criativos que vivem fora de Portugal do que com agências portuguesas. O João ganhou o primeiro Leão fora de Portugal. Porquê?
Lá fora há melhores condições para as pessoas concretizarem o seu potencial. Um criativo sozinho não ganha prémios, precisa de estar em agências com mais estrutura e ambição. Quando cheguei à Ogilvy, em 2011, a agência tinha ganho 11 Leões. Em 2012, a ambição era ganhar pelo menos 12 Leões e um ouro, que nunca tinha ganho. Em 2012, a agência ganhou 16 Leões e quatro ouros. Em 2013, a ambição era ganhar um Grande Prémio e ganhou dois: um com a campanha da Dove, do Hugo Veiga (português), e outro com a campanha que fiz para os doadores de órgãos.
As marcas dão importância aos prémios que as agências e os criativos ganham?
Os clientes globais querem trabalhar com agências que ganham prémios, porque sabem que as pessoas partilham nas redes sociais esse tipo de campanhas, sem precisarem de investir em media. Os grandes vencedores em Cannes este ano são todos campanhas com milhões de visionamentos online. Por exemplo, a campanha Like a Girl, da Always, teve um empurrãozinho de media mas depois andou sozinha; como são insights (perceções) verdadeiros, as pessoas identificam-se e partilham. O mesmo aconteceu com a campanha que fiz sobre as armas.
Nessa campanha, em que criou uma loja real de venda de armas, ninguém sabia que se tratava de uma campanha?
Era uma loja 100% real, em que o único ator era o vendedor. Em Nova Iorque, a venda de armas é proibida, por isso a campanha ainda teve maior impacto. Há apenas duas lojas com licenças, mas são muito antigas. A loja esteve aberta uma semana no Low East Side, em Manhattan, e ninguém no bairro sabia. Foi aberta como uma loja dirigida a indivíduos que iam comprar uma arma pela primeira vez, em que as pessoas chegavam, o vendedor mostrava-lhes as armas e cada uma delas tinha uma etiqueta a contar a história da pessoa que tinha sido morta com ela. Houve um programa da Rachel Maddow, da MSNBC, em que foi mostrado o vídeo e ela referiu que pela primeira vez as pessoas eram postas no lugar do atirador e não da vítima. Os indivíduos, quando compram uma arma, não têm noção do que poderá acontecer.
Este tipo de campanha tem efeito concreto em termos de alteração da lei?
Funciona, e este tipo de lóbi de controlo de armas é cada vez mais forte. Este é um cliente que está na agência há uns quatros anos. É uma associação de Estados que tem como objetivo levar ao Congresso uma petição que visa a mudança de paradigma na venda de armas ou que haja um controlo.
Quando aceitou trabalhar, este cliente tinha alguma posição sobre o assunto?
Sim. Os meus filhos nunca viram uma pistola, nem sequer de plástico. É uma coisa que me faz muita confusão, a violência, a guerra. O Bush filho era uma pessoa que eu detestava. O Obama tem uma política completamente diferente, é um pacificador. Ele e o Papa Francisco são as pessoas que mais admiro como seres humanos, pois pensam pela sua própria cabeça e não são fantoches.
Teve retaliações ou foi ameaçado por causa desta campanha?
Nunca aconteceu. Mas a National Rifle Association, no dia a seguir a sair a campanha, meteu vários processos contra o nosso cliente, dizendo que é ilegal abrir uma loja de armas em Nova Iorque. A campanha demorou seis meses a ser produzida e grande parte desse tempo foi com reuniões com advogados, para que a campanha fosse 100% legal. Arrendámos uma galeria de arte e a licença que tínhamos era uma licença para exposição de armas. Era um museu de armas, não eram para vender, só queríamos sensibilizar as pessoas.
A mudança será feita através das alterações à lei ou da mudança de mentalidades?
A ideia é que enquanto não houver alterações à lei as pessoas pensem duas vezes antes de comprarem uma arma. A campanha funciona bastante nesse sentido. Temos um site, o www.gunswithhistory.com, que imita o layout de uma loja de armas, tem nove armas e conta a história de cada uma delas, e acontece que são histórias 100% verdadeiras. A pessoa pensa que vai comprar uma arma e quando clica vê a história e o vídeo verdadeiro da tragédia, como, por exemplo, a do miúdo que matou a mãe no Wal-Mart.
Duas das suas campanhas com mais visibilidade, esta e a dos doadores de órgãos, são para causas sociais. Porquê?
É coincidência, é uma coisa que gosto muito de fazer, mas infelizmente tanto uma como outra não são clientes que permitam manter uma estrutura. O papel destes clientes nas agências é nós darmos-lhe visibilidade, fazermos um trabalho que seja relevante para eles e que também ganhe prémios em festivais. Não há que mentir em relação a isso.
Acha que o papel da publicidade e das marcas está a mudar?
O papel das marcas e da publicidade tem-se reinventado nos últimos anos. Os filmes com pessoas a rir e famílias felizes no supermercado já não funcionam, ninguém acredita, as pessoas não se identificam. Há muitas marcas que ainda fazem esse tipo de publicidade, mas ninguém vai ao Facebook partilhar uma campanha de uma família feliz a comer cereais.
Os festivais olham mais para as campanhas sociais ou as marcas comerciais deixaram de saber falar para as pessoas?
Este ano, muitas das ideias que ganharam mais prémios em Cannes foram todas ideias pro bono. Foi a manifestação dos hologramas em Espanha [contra uma nova lei espanhola que restringe o direito à assembleia e ao protesto em espaços públicos], a nossa campanha das armas, a campanha do desafio do balde de gelo e depois houve uma campanha mas com uma marca, a Always, que é uma comunicação tipo o anúncio Sketches, da Dove, que é a Like a Girl [crian ças e jovens de ambos os sexos participam numa audição onde lhes é pedido para agirem como uma menina, pondo a nu estereótipos], que é uma experiência social com pessoas reais. As marcas descobriram um tipo de publicidade com pessoas reais com as quais as pessoas se identificam. Foi a Dove, com a campanha Beleza Real, que inaugurou este estilo.
Quando saiu de Portugal, quais foram as diferenças que sentiu em termos de trabalho?
Em Portugal e em Espanha as marcas estão menos disponíveis para pagar ideias, e isso é reflexo da crise. As agências ficam numa posição mais fragilizada e os clientes jogam com isso, dizem que põem a conta a concurso caso não façamos um preço mais baixo. Nos Estados Unidos, e essa foi uma grande diferença, respeitam-se os criativos e a criatividade.
Respeita-se porque se tem mais consciência da importância da criatividade na gestão de um negócio?
Exatamente. Os clientes confiam mais nas agências. É uma questão cultural, são mercados bem mais sólidos e maduros do que o nosso.
As agências também têm mais noção da importância do seu trabalho no negócio dos clientes?
Consegue-se ter clientes que confiem em nós, e só depende de nós fazer um bom trabalho e apresentar-lhes as melhores soluções. No final dos anos 90, os clientes confiavam imenso nas agências, e houve muitas agências que deram tiros ao lado, que faziam o trabalho para satisfação pessoal.
Era aí que eu estava a querer chegar…
Sim, faziam mais trabalho para elas do que para a marca, e os clientes deixaram de confiar. De repente, se calhar, os Estados Unidos também passaram por essa fase, mas não sinto nada disso agora.
O que é que os clientes nos Estados Unidos mais procuram? É a tal comunicação emocional para ser partilhada na Internet?
Querem anúncios virais. Os clientes estão mais disponíveis para gastar dinheiro numa ideia se virem um potencial para se tornar viral.
Um pouco como a moda das campanhas de outdoor, em que os diretores de marketing gostavam de ver as suas marcas espalhadas pelo país.
Sim, hoje todos os clientes ambicionam ter vídeos com 100 milhões de visionamentos.
Fazer um vídeo que suscite a partilha é cada vez mais difícil de conseguir?
Têm de ser ideias que nunca foram vistas. As ideias premiadas em Cannes nunca foram vistas antes, as que ganham ouro ou o Grande Prémio. Em Portugal há um bocadinho o problema de se andar atrás do que se faz em Inglaterra, no Brasil ou nos Estados Unidos. Assim é complicado ter uma ideia completamente inovadora.
Porque acha que isso acontece?
Por se pensar que se uma ideia já funcionou num país também vai funcionar cá. Isto não acontece só em Portugal. A Dove, por exemplo, lançou a campanha Beleza Real e a seguir apareceram uma data de campanhas dentro do mesmo género. A Like a Girl, da Always, é meio nesse estilo. Dificilmente irão ter os mesmos resultados, porque são cópias.
Isso tem a ver com a falta de autoestima e acreditarmos mais nas ideias dos outros, indo atrás do que eles já fizeram?
Acho que é mais querer ir atrás de uma coisa segura. Os clientes gostam de apostar em coisas que sabem que funcionaram.
Por isso é mais fácil um cliente pro bono aproveitar uma ideia difícil por ter menos a perder do que um cliente comercial que tem produtos para vender?
Sim, e isso é verdade em todo o lado, em Portugal, no Brasil ou nos Estados Unidos.
Qual o limite entre o arriscar e o mau gosto ou dar um tiro ao lado?
O bom senso, que é uma coisa comum.
No Brasil, que é uma cultura mais descontraída, há muitos casos de descambanço e mau gosto?
Há excelentes criativos no Brasil, mas infelizmente há só duas ou três agências que lutam por fazer bom trabalho, que são a Almap BBDO, a FNazca e a Ogilvy. Depois há todas as outras agências que têm duas agendas: uma é a dos prémios e a outra é a do dia a dia, e o trabalho do dia a dia deixa muito a desejar. Fiquei desiludido quando cheguei ao Brasil, por ser um país com tradição publicitária e criativos espalhados pelo mundo.
Também é um país com grande tradição de anúncios fantasma (não têm um cliente e não ‘foram para o ar’) em Cannes.
Sim. Nos Estados Unidos não é assim. Na Grey, a nossa ideia é fazer bom trabalho; se ganhar prémios, melhor ainda. Óbvio que este pro bono está na agência por haver uma relação de troca. Fazemos trabalho que seja efetivo e visível para o cliente, seguindo a filosofia da Grey famously effective, em que também haja uma contrapartida de aproveitar uma ideia para ganhar prémios.
Com qual dos países se sente mais identificado?
Em todos os países trabalhei com bons clientes, incluindo em Portugal, onde há excelentes clientes. Por vezes há a tendência de as agências culparem os clientes do seu insucesso nos prémios, e acho isso profundamente injusto. Nos Estados Unidos há clientes superconservadores, mas na estrutura da agência o departamento criativo é super-respeitado. Isso foi uma coisa que me desiludiu em Portugal nos últimos tempos com a crise e a pressão, os criativos eram quase só executantes.
Pensa voltar a trabalhar em Portugal?
Gostava de voltar um dia. Agora vou ficar em Nova Iorque e na Grey, enquanto estiver feliz.
Como é a relação de trabalho no Brasil?
Parece um pouco que estão a fazer um favor às pessoas por lhes darem trabalho e há muito a relação patrão/ empregado, muita subserviência e ‘puxa-saco’. Fez-me alguma confusão.
Quais são as mudanças que identifica em si próprio entre a pessoa que é hoje e a que saiu de Portugal há quatro anos?
Cresci bastante e saí da zona de conforto. Quando comecei a trabalhar em publicidade, em meados dos anos 90, uma pessoa com 30 anos era um velho. Estou com 43 e estou a atravessar a melhor fase da minha carreira. Quando cheguei aos Estados Unidos, achava que falava bem inglês, mas foi bem complicado. A maior parte das reuniões são para apresentar campanhas em inglês para um telefone, porque os clientes estão noutros Estados.
BI
O publicitário que acredita
Nome
João Coutinho
Vida
Nasceu no Porto há 43 anos e já viveu em Lisboa, Madrid e São Paulo. Atualmente está em Nova Iorque, onde assume a direção criativa da agência de publicidade Grey.
Carreira
Estudou arquitetura, mas foi na publicidade que fez carreira como diretor de arte. Ganhou o primeiro concurso Jovens Criativos em 1995, em dupla com Tiago Guedes, o que o levou pela primeira vez a Cannes, ao festival internacional de criatividade, em 1996. Começou a trabalhar em Portugal na Ogilvy e depois passou pela Nova Publicidade, Y&R, FCB, BBDO, Strat, JWT e Lowe. Em 1999 foi para a Y&R/Madrid, onde se manteve até 2002. Trabalhou na Ogilvy, em São Paulo, entre 2011 e 2014. Somou múltiplos prémios, incluindo 22 Leões em Cannes e vários troféus noutros festivais internacionais de publicidade.
Recados
“Lutem pelos vossos sonhos que eles acabam por se realizar”; “já era uma pessoa positiva antes de mudar para o Brasil, mas tornei-me ainda mais. Eles têm uma expressão que é ‘vai dar tudo certo’. E se acreditamos e vamos atrás, dá mesmo”; “as marcas e as empresas podem fazer muito mais do que apenas vender produtos. Podem mudar mentalidades, preconceitos e estigmas”.
Este artigo é parte integrante da edição de setembro da revista EXAME