Na juventude ganhou as graças do mar, a trabalhar nos paquetes de luxo em viagens à volta do mundo. Acumulou milhas náuticas, dinheiro e sabedoria. Como armador, Mário Ferreira, 44 anos, ganhou as graças do rio Douro. Em 2014, a Douro Azul vai faturar 32 milhões de euros (o dobro de 2012) e libertar 13 milhões de euros de resultados operacionais (3 milhões em 2012).
A estimativa é segura porque uma das virtudes do negócio dos cruzeiros é a antecedência das marcações. A Douro Azul conta com 160 milhões de euros de reservas sinalizadas e contratos até 2020.
A americana Viking River Cruise é um dos principais parceiros. É esse conforto que embala o arrojado plano de investimentos.
Em 2014, fechará um ciclo de expansão de 56 milhões de euros e de reforço da frota fluvial. Fica com 16 navios, 14 dos quais com cabines, e uma capacidade para hospedar 1026 passageiros. Uma armada poderosa para atacar o Douro.
Quem investe num negócio industrial não tem certeza nas vendas. Mas a Douro Azul tem. Os quatro navios-hotel encomendados já estão reservados por operadores americanos, europeus e australianos.
A empresa beneficia de uma “situação ótima”, combinando o melhor de dois mundos: empréstimos de longo prazo a taxa baixa (inferior a 5%) com amortizações suaves e as vendas repartidas por vários mercados e muitos operadores.
Mário Ferreira não deteta um único fator de risco. “Só se o mundo acabar ou os países entrarem em colapso económico ao mesmo tempo”, responde o fundador da Douro Azul. A amortização de um navio é feita ao longo de 40 anos, mas a sua vida útil é mais longa.
O dia 22 de março de 2013 ficará na história da empresa. O estaleiro da Navalria, em Aveiro, registará o inédito batismo simultâneo de dois navios de cruzeiro construídos em Portugal. Um ano depois repete-se a cerimónia com a entrega de mais dois, todos eles com ocupação garantida para os primeiros anos de operação.
Amazonas depois de 2014
E, no entanto, a cruzada de Mário Ferreira não foi isenta de sobressaltos e adversidades.
Primeiro, teve de vender ativos hoteleiros, para acertar contas (12 milhões de euros) quando se divorciou da milionária americana Barbara Rayford. Depois, não naufragou quando as firmas de capitais de risco, desgostosas com o rumo da empresa, decidiram vender as suas participações (37%). O BES emprestou-lhe 13 milhões e tornou-se acionista único. Pelo meio, sofreu o percalço do Algarve, desistindo da rota de mar entre o Arade e o Guadiana, depois de acumular perdas de 4 milhões de euros. O armador encara o regresso ao sul quando for possível subir o Guadiana até à histórica vila de Mértola.
Finalmente, em 2010, falhou a entrada em Bolsa numa operação que renderia 40 milhões de euros. O encaixe destinava-se, sobretudo, a financiar o sonho do Amazonas, com cruzeiros ao longo de 2000 km, entre Manaus e Quito (Peru). O fracasso “teve a virtude de impor procedimentos de rigor e exigência idênticos ao das empresas do PSI-20”. O projeto do navio-hotel, à medida da imponência do Amazonas, está pronto e existe até uma maquete. Mas a operação permanece submersa, sem estar abandonada. As autoridades e o Banco do Brasil “acarinharam a ideia e prometeram todo o apoio”. Mário Ferreira não quer dar braçadas maiores do que os braços e promete voltar a avaliar o negócio Amazonas, em 2014, depois de fechar o atual ciclo de investimentos.
Banca europeia confia
Mal perdeu as graças do mercado de capitais, a Douro Azul ganhou a bênção da banca internacional. Com a procura dos cruzeiros no Douro em alta, traçou um novo modelo de financiamento. Em vez de 40 milhões de euros, levantou 56 milhões “com facilidade”. Bancos alemães e suíços juntaram-se ao BES na confiança sobre o desempenho futuro do negócio.
A banca acredita “quando se apresentam bons resultados, um balanço sólido e um plano de negócios coerente”. As candidaturas aos fundos europeus, através do Fundo de Turismo e do AICEP, é a outra face deste modelo de financiamento. O programa incluiu empréstimos sem juros e taxas bonificadas ao longo de 10 anos. No limite, uma parte dos 22 milhões aprovados pode ficar a fundo perdido, aliviando os encargos futuros.
Na gestão da dívida, o empresário move -se entre dois mandamentos: a autonomia financeira (mede a exposição da empresa aos capitais) será sempre superior a 40% e o endividamento nunca pode exceder 4,5 vezes o EBITDA (resultado antes dos juros, depreciações e amortizações). Se, após este ciclo, parasse os investimentos, em 2017 teria um passivo zero.
Foi com o segundo barco, amortizado após o primeiro ano de exploração, que Mário Ferreira fez o seu primeiro milhão.
Na vida da Douro Azul, o momento decisivo “foi ter desvalorizado os cruzeiros diários Porto-Régua e centrado energias nos navios-hotel para o mercado externo”. Em 2012, foram 100 mil dormidas nas camas da Douro Azul. Nos cruzeiros, dominam os casais de reformados de países ricos.
E como se fideliza a clientela? Através “de uma rede de distribuição adequada e a oferta de um produto que cumpra as expectativas”. Um desafio fácil de superar “para empresas com experiência do negócio e conhecimento dos mercados”.
A Douro Azul vende os seus cruzeiros nos mercados externos como “great value for money”. O seu programa de 10 noites inclui um circuito de três dias pelo triângulo Lisboa, Sintra, Cascais e uma viagem até ao Porto com paragem em Fátima ou Coimbra. No Porto, há dois dias para visitar a cidade.
E agora, o luxo
Com os cruzeiros diários em queda, decidiu abandonar este segmento mais popular, dependente da procura interna. Em 2012, o negócio caiu 16%, representando 3 milhões de euros nas vendas globais (17%).
Abateu a frota de três barcos, encaixando 2 milhões.
Em alternativa, vira-se para o filão do luxo, com barcos espaçosos, poucas cabines e uma confortável área disponível por passageiro. No início, o plano era alocar uma embarcação dos cruzeiros diários, em fase de reconversão na Navalria. Mas, em junho, Mário Ferreira teve um sobressalto virtuoso. O que será feito do “Spirit of Chartwell”, a royal barge que serviu de base no Tamisa às celebrações do Jubileu da rainha? Rapidamente, percebeu que a barcaça estava fora da alçada real e que o seu dono era Philip Morell, um armador milionário do seu círculo de contactos.
Quem não arrisca, não petisca e, afinal, não perdia nada em telefonar ao armador que cedera a embarcação à Casa Real. Philip riu-se na cara e recusou com veemência a ideia de vender um símbolo britânico como o “Spirit of Chartwell”. Bruscamente, uma semana depois, Mário recebeu um telefonema amargurado de Philip. Mudara de ideias e estava disponível para um acordo. Se queria negociar a barcaça, que aparecesse no seu escritório de Londres.
Foi música para os ouvidos de Mário que no dia seguinte se meteu no avião e fechou um negócio que arranhou o orgulho britânico.
Um caso de sorte e oportunidade.
Nessa semana, conta Mário Ferreira, Philip Morell revoltara-se ao saber que as autoridades lhe tinham negado umas licenças especiais para o Tamisa. O copo da animosidade transbordara e o empresário vingou-se do país, aceitando a oferta de Mário Ferreira, duas semanas depois do Jubileu.
O “Spirit of Chartwell”, com 12 cabines, destina-se a clientes endinheirados, disponíveis para pagar 5000 euros por cabeça por uma semana no Douro. Nos cruzeiros vulgares, o preço oscila entre os 1500 e os 2000 euros.
Com o restauro “ficou novinho em folha, há quartos que nunca foram usados”.
A barcaça real é a bandeira de que a Douro Azul precisava na luta pelo mercado de luxo. Para 2013 “não está fácil angariar contratos”. Os operadores trabalham “com muita antecedência”. Mas, para os anos seguintes, “o ‘Spirit of Chartwell’ será um caso de sucesso”, em especial nos mercados britânico e americano. A frota de luxo contará com outra barcaça (15 quartos) e dois pequenos iates, com três quartos.
Por terra, água e ar
A partir de 2013, a empresa beneficia ainda da extensão da época de cruzeiros no Douro. O rio fica fechado 10 semanas, de janeiro a março, em vez das 22 anteriores. Este efeito gera mais negócio e concede o carácter permanente a uma boa parte do emprego sazonal. O esforço expansionista traduz-se na criação de 147 novos empregos. Em 2014, a folha salarial contará com 400 nomes.
A reorganização interna levou à criação de uma divisão específica para o negócio do City Sightseeing. Há três anos tornara-se num operador terrestre (Blue Bus) com uma frota de 10 autocarros, aproveitando a crescente presença de turistas no Porto.
As companhias low cost tornaram próspero um negócio que o novo terminal de paquetes em Leixões ajudou a potenciar.
Nessa altura, já a Douro Azul vendia a vista aérea da Invicta, a bordo do seu primeiro helicóptero. Em março, chega o segundo.
Por água, os circuitos fluviais ficarão a cargo de dois barcos rabelos em construção e serão entregues em abril de 2013. A Douro Azul replica o modelo original em madeira, com uma estrutura em perfis de aço. É uma “espécie de autocarro aquático de grande charme que navegará entre as pontes do Douro, com a zona histórica do Porto em fundo”.
Um negócio próspero
Abençoados “baby boomers”
O negócio dos cruzeiros fluviais prospera em todo o mundo e, segundo Mário Ferreira, a explicação reside na geração baby boomer, nascida no pós II Guerra Mundial. São 15 mil que se reformam por dia e engrossam um pelotão de turistas que têm em comum capacidade financeira, vontade de viajar após uma vida sem férias e preferência pelo turismo de conhecimento e cultural. Há 10 anos, os operadores acreditavam que, nos cruzeiros de mar, o futuro estaria nos destinos de sol e praia (Caraíbas) num ambiente de ócio e luxúria, inspirados no ambiente de Las Vegas. Mas tiveram de reformular a oferta, adotando um modelo que valoriza a aventura e a descoberta de cidades com história.
No negócio fluvial, o Nilo era, antes da tensão social abalar o Egito, a Meca da prosperidade, com 300 navios ao longo dos seus 300 km navegáveis – o Douro tem 210 km navegáveis e meia dúzia de cruzeiros por dia. No topo da procura encontram-se agora rios do Centro da Europa, como o Reno e o canal Meno-Danúbio. Mas o crescimento exuberante verifica-se em leitos mais excitantes, como o do Yangtze (China) ou Mekong (Vietname). No futuro, o programa da Douro Azul no Amazonas poderá rivalizar com a oferta de pendor exótico.
Este artigo é parte integrante da edição 345 da Revista EXAME