Robert Malone é um médico e consultor norte-americano que se apresenta, no site pessoal, na conta oficial de Twitter e no perfil LinkedIn, como o inventor das vacinas de RNA mensageiro (mRNA) e da transferência de mRNA.
Em 1989, Malone publicou um artigo intitulado “Cationic liposome-mediated RNA transfection“. Neste estudo, o médico descobriu que era possível transferir mRNA protegido por uma pequena bola de gordura (um lipossoma) para dentro de células de cultura, a fim de fornecer as informações necessárias para a produção de proteínas nessas mesmas células.
Um ano mais tarde, publicou um outro estudo, no qual aplicava in vivo (em ratinhos de laboratório) o conhecimento descoberto em 1989.
O que acontece é que as vacinas de mRNA utilizam o mesmo método. Ou seja, quando a vacina é administrada, o mRNA precisa de estar envolvido numa cápsula lipídica para conseguir entrar nas células, tal como descobriu Malone em 1989. Esta cápsula, depois, degrada-se e as “fábricas de proteínas”, os ribossomas, leem o que está escrito no mRNA e começam a produzir a proteína spike do coronavírus.
No entanto, descobrir a forma de transferir mRNA para as células humanas e conseguir que este permaneça o tempo suficiente para que as células consigam produzir a proteína desejada são coisas diferentes. Desde a descoberta de Malone até às atuais vacinas contra a Covid-19 foi ainda preciso encontrar uma forma através da qual o mRNA não desencadeasse uma reação inflamatória quando injetado no corpo humano.
Katalin Karikó é que descobre a transferência de mRNA sem reação inflamatória
Só em 2005 é que Katalin Karikó, bioquímica húngara e atual vice-presidente senior da BioNTech, e o seu colaborador Drew Weissman, imunologista doutorado na Universidade de Boston, encontraram uma maneira de contornar o problema.
Os investigadores descobriram que, se modificassem um dos quatro blocos que constituem o mRNA, chamados nucleosídeos, a inflamação não acontecia. Os resultados foram apresentados no estudo “Suppression of RNA Recognition by Toll-like Receptors: The Impact of Nucleoside Modification and the Evolutionary Origin of RNA”.
Três anos mais tarde, na Alemanha, o médico especialista em Imunoterapia Ugur Sahin e a mulher Özlem Türeci fundavam a BioNtech, tendo como prioridade o desenvolvimento de tratamentos de imunoterapia contra o cancro, incluindo através da utilização do mRNA. Em 2013, contrataram Karikó como vice-presidente e desde 2018 que a BioNTech e a Pfizer tentam criar uma vacina da gripe à base de mRNA.
Em 2010 foi a vez de Derrick Rossi, um dos fundadores da Moderna, adaptar a técnica de Karikó e Weissman para investigações com células estaminais.
Em janeiro de 2020, após ter lido um artigo sobre um misterioso vírus que se disseminava na China, Ugur Sahin mobilizou 500 cientistas da BioNTech com o objetivo de desenvolver uma vacina em tempo recorde. A fabricante de medicamentos chinesa Fosun e a farmacêutica norte-americana Pfizer tornaram-se suas parceiras em março do mesmo ano.
Robert Malone e a polémica do vídeo retirado do Youtube
Recentemente, o autoporclamado pai das vacinas de mRNA tem estado particularmente sob a luz dos holofotes. Em junho, referindo que violava “as diretrizes da comunidade”, o YouTube apagou um vídeo no qual Malone defendia que as nanopartículas lipídicas da vacina contra a Covid-19 (a tal cápsula lipídica que o próprio Malone descobriu ser necessária à transferência de mRNA, em 1989) não se concentram apenas na área do corpo onde foi aplicada a vacina, mas espalham-se e acumulam-se noutros órgãos e tecidos, sobretudo nos nódulos linfáticos, podendo causar leucemia e linfomas.
“Estamos a falar de partículas que estão precisamente desenhadas para que o RNA seja entregue apenas e só às células onde queremos que ele chegue”, comenta o investigador principal do iMM, Miguel Prudêncio.
“Não vejo porque razão é que estas partículas, ao irem para os nódulos linfáticos, haveriam de provocar linfomas”, acrescenta a especialista em nanopartículas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, Helena Florindo.
A investigadora explica que a maioria das nanopartículas injetadas “fica no local da administração” e algumas delas, pelo tamanho que têm, migram para os nódulos linfáticos, “mas não comulam, porque são completamente biodegradáveis”.
Helena Florindo sublinha que é precisamente esta migração que permite uma resposta imunológica tão forte. “As nanopartículas que envolvem o RNA são capturadas pelas células imunológicas nos nódulos linfáticos, que fazem a apresentação do antigénio (proteína spike) nesse local. É por isso que a resposta imunológica é muito forte, porque não é só mediada por anticorpos, mas também por células”.
Segundo os sites Epoch Times e The Defender, outra crítica feita por Robert Malone, no vídeo apagado pelo Youtube, prende-se com a falta de “antiguidade” nos estudos feitos às características destas nanopartículas. Mas Helena Florindo assegura que a acumulação de nanopartículas em processos de transferência de RNA não é uma preocupação propriamente recente na comunidade científica e que já “há 10 ou 15 anos” que se têm vindo a fazer vários estudos de biodistribuição.
Um exemplo é o estudo de Luís Brito, Senior Director da Moderna, submetido em 2018 à Sociedade Americana de Terapia Genética e Celular e publicado em abril de 2019, no qualo investigador já se debruçava precisamente sobre a otimização das propriedades das nanopartículas lipídicas usadas em vacinas de mRNA.
À Fox News, Robert Malone disse ainda que a análise risco benefício do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), relativamente a vacinar crianças, não havia sido feita com base em dados científicos. No entanto, a intituição publicou um documento público onde é possível observar todos os dados que deram origem à conclusão que o benefício foi considerado sempre superior ao risco em todas as faixas etárias.
Miguel Prudêncio admite, no entanto, que “é diferente falarmos do risco benefício nas idades mais jovens e nas populações mais idosas, onde o benefício supera largamente o risco”. O investigador defende que “é perfeitamente legítimo fazer uma discussão individualizada relativamente à vacinação das faixas etárias mais jovens”, e considera que é precisamente isso que é feito no documento apresentado pelo CDC.
A proteína spike não é citotóxica
Outra questão levantada por Malone, noutro vídeo que ainda se encontra disponível no YouTube, está relacionada com alegadas propriedades cititóxicas (nome dado à toxicidade quando falamos num contexto celular) da proteína spike, produzida no nosso corpo após a vacina.
Esta questão já foi verificada pela VISÃO e não existe “qualquer estudo convincente que aponte nesse sentido”, nas palavras do imunologista da Fundação Champalimaud Thiago Carvalho.
Além do facto que “o material que é injetado vai ser processado por células próximas da zona onde a administração da vacina é feita, a proteína é produzida nessa mesma zona e fica, na sua vastíssima maioria, agarrada a membranas de células dessa zona”, sublinha Miguel Prudêncio.
Conclusão
ENGANADOR – Robert Malone não inventou a vacina de mRNA contra a Covid-19. Há 32 anos, o médico descobriu sim a forma de transferir RNA entre células, em células de cultura e ratinhos de laboratório.
A descoberta da transferência de RNA sem que este causasse reações inflamatórias e, por isso, pudesse ser utilizado para terapias em humanos, é atribuída a Katalin Karikó e a Drew Weissman e foi utilizada tanto pela Moderna como pela BioNTech, desde que as empresas foram criadas, respetivamente em 2010 e 2008.
Quanto às alegações de Malone relativas à cápsula de gordura necessária à transferência de mRNA que está na base do funcionamento das vacinas de mRNA, esta é completamente biodegradável e desenhada para direcionar o RNA para as células específicas onde queremos atuar, neste caso, as células dos nódulos linfáticos.
O CDC apresentou uma análise relativa ao risco benefício de vacinar crianças. Esta é baseada em dados científicos, mas os especialistas admitem que é um assunto em evolução e ainda a ser discutido à medida que mais evidência científica for surgindo.
FACT CHECK “VERIFICADO”. Conheça os factos, porque é preciso ter VISÃO.