Se preciso for, Liliana Sintra, 36 anos, vira o mundo do avesso para safar alguém de um apuro. Sempre foi assim. Como se um dos seus apelidos Caridade a obrigasse a dizer “presente” quando ouve um grito de socorro. Em pequena, via os avós acudirem à vizinha que ficava sem teto, noutro dia, era a mesma vizinha que ia lá a casa entregar umas couves. Cresceu em Alcabideche, Cascais, onde o sentido de comunidade era muito forte. E ninguém falava em voluntariado. Era assim e pronto.
Como nasceu com spina bifida (malformação que surge no primeiro mês de gravidez, que se traduz em vértebras que não estão completamente formadas), os pais juntaram-se à Associação Spina Bifida e Hidrocefalia de Portugal (ASBIHP) e todos os verões faziam voluntariado nos campos de férias da associação. A partir de certa altura, Liliana passou também a ser voluntária, ensinando aos miúdos mais novos as estratégias que já tinha encontrado para “se desenrascar”. Na universidade, onde estudou Psicologia, lia livros para cegos e ia dando uma ajuda aqui, outra ali, a quem lhe aparecia, sobretudo pelas portas da ASBIHP.
Às tantas, criou um blogue, o Quadripolaridades, que se tornou muito popular e que tem usado para resolver problemas que aparecem no Bairro do Amor, uma associação que montou para tratar de situações avulso: uma família de refugiados a precisar de montar uma casa, calçar 120 crianças de um bairro carenciado, distribuir livros escolares. Os pedidos de ajuda são publicados no blogue, e os amigos, conhecidos ou apenas leitores, vão respondendo à chamada. “Faço isso por puro egoísmo”, diz, com desassombro. “Sinto–me bem, poderosa, quando consigo mobilizar um grupo de pessoas. Vejo as coisas acontecerem e penso: está tudo aqui porque dei um grito, fui capaz de influenciar.”
Assim, desta forma desconcertante, Liliana desmonta o epíteto de altruísta, ou “boazinha”, que muitos tendem a atribuir-lhe. Na verdade, não está a fazer nada de especial. E, antes dela, quem o disse foi o próprio Charles Darwin, o tal da Teoria da Evolução.
Altruísmo define-se como o ato de fazer bem ao próximo, mesmo que isso implique um risco ou um custo para nós próprios. Somos intuitivamente egoístas, mas capazes de cooperar após reflexão deliberada, ou somos intuitivamente cooperantes, mas egoístas após deliberarmos? É a eterna questão que opõe o filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes, ao suíço do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau.
Para tirar isso a limpo, investigadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, puseram mais de mil pessoas a jogar, umas online, outras em laboratórios.
A situação era a seguinte: está a jogar com outras três pessoas que não conhece (e que pode nunca vir a conhecer), e cada um tem uma quantia em dinheiro, para começar. É convidado a contribuir com uma quantia em dinheiro, para um bolo comum, que será depois duplicado e distribuído por cada participante. Numa primeira análise, concluiu-se que as pessoas que demoravam menos de dez segundos a decidir quanto davam desembolsavam cerca de 15% mais do que as que tardavam mais a fazer contas à vida. Num segundo estudo, metade dos voluntários foi obrigado a demorar mais de dez segundos para tomar uma decisão, enquanto a outra metade teve de jogar em menos de dez segundos.
Novamente os pensadores se revelaram mais sovinas. Ou seja, o primeiro impulso é cooperar, em vez de competir.
Resultados semelhantes foram detetados em crianças pequenas, e até os primatas não humanos mostram sinais de altruísmo. Porque isso é vantajoso. Darwin, que lhe chamava benevolência, escreveu que é “uma parte essencial dos instintos sociais”.
O BOM SELVAGEM
Trabalhos de neurocientistas mostram que quando agimos de forma altruísta, o nosso cérebro é ativado nas regiões responsáveis pelo prazer e pela recompensa, tal como acontece quando comemos chocolate. Num estudo, publicado em 2012 na publicação científica Nature Neuroscience, feito em macacos, relata-se que sucedeu isso mesmo: foram acionados circuitos cerebrais de recompensa depois de terem dado alguma coisa a outro macaco.
Sublinhe-se: depois de terem oferecido, não de terem recebido.
A experiência consistiu em pôr macacos a decidir se davam um pedaço de sumo de fruta a outro macaco. Em primeiro lugar, os animais ficavam com o sumo para eles próprios. Mas se tinham a hipótese de recompensar um membro do grupo, mesmo sem que isso lhes trouxesse qualquer benefício, a opção era favorecer o outro. Ou seja, os macacos escolhem fazer o bem, mesmo sem levar nada em troca. Neste trabalho, feito por um cientista do Instituto para as Ciências do Cérebro da Universidade de Duke, Michael Platt, também se concluiu que os macacos preferiam premiar um animal que conheciam, em detrimento de um desconhecido, e ainda que eram mais benevolentes relativamente a um animal com um estatuto social inferior (em consonância, um estudo australiano concluiu que os moradores de bairros mais ricos são mais altruístas do que os que vivem em bairros pobres). E ainda que não havia interesse em oferecer um sumo de fruta a um objeto.
Esta recompensa, sentida em partes específicas do cérebro, num processo de empatia, pode ter sido favorecido durante a evolução nos primatas, de forma a permitir comportamentos altruístas. “Pode ter evoluído originalmente de forma a promover que cada um tratasse bem os elementos da sua família, uma vez que partilham os mesmos genes, e mais tarde estendeu-se aos amigos, de forma a gerar benefícios recíprocos”, diz Michael Platt, citado num artigo publicado na revista Psychology Today.
Neste estudo, os cientistas, que ligaram elétrodos ao cérebro dos macacos, enquanto estes tomavam as suas decisões de dar ou não dar, identificaram o córtex cingulado anterior como a região onde se origina a empatia.
O BOTÃO DO ALTRUÍSMO
De facto, o altruísmo parece estar “implantado no cérebro”, concluem os cientistas do Laboratório de Neuroimagem e Neuromodulação da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, depois de submeterem um grupo de 20 adultos a três tipos de atividades. A primeira foi o Jogo do Ditador. Nesta tarefa, os participantes receberam dez dólares, que podiam partilhar com um estranho (a cujo perfil tinham acesso) ou ficar com o dinheiro, repetindo o procedimento 24 vezes. Na segunda tarefa, os voluntários deviam imitar ou observar fotos de 12 indivíduos, que expressavam quatro tipos de emoções. A terceira parte do estudo consistiu em ver um vídeo em que uma mão era picada por uma seringa.
Tudo isto foi feito enquanto o grupo era sujeito a uma ressonância magnética funcional (em que fica registado o funcionamento do cérebro enquanto realiza uma determinada tarefa). No teste da agulha, percebeu-se que eram ativadas as zonas relacionadas com a dor e a emoção a amígdala, o córtex somatossensorial e a ínsula. O jogo da imitação ativou as mesmas regiões cerebrais. Quanto ao Jogo do Ditador, a equipa descobriu que os indivíduos que davam menos dinheiro aos estranhos, um a três dólares (quando a média geral foi de 6,18 dólares) registaram o mais alto nível de atividade ao nível do córtex pré-frontal (relacionado com a capacidade de planear e com a função executiva, de tomada de decisões). Por outro lado, os indivíduos que demonstraram ter maior atividade na região sensorial e na amígdala (que tem um papel fundamental nos comportamentos sociais e na resposta ao perigo) eram os mais generosos, dando à volta de 75% do que receberam ao longo do jogo.
Num estudo seguinte, este já com 58 participantes, os investigadores refrearam a atividade do córtex pré-frontal, mediante uma técnica usada em psiquiatria e conhecida como Estimulação Magnética Transcraniana, e concluíram que as doações, durante o Jogo do Ditador, foram significativamente maiores. O que significa que o córtex pré-frontal é um inibidor das ações pró-sociais. Ou ainda que é possível amplificar a capacidade de partilhar. Reduzir a atividade nestas regiões cerebrais envolvidas no comportamento e no impulso aumentava a generosidade em cerca de 50%, relativamente ao grupo de controlo.
A nível da evolução da espécie, especula-se que, a dado ponto, tornou-se necessário procurar comida em conjunto, o que significava que cada indivíduo do grupo era também responsável pelo bem-estar do parceiro. Os indivíduos que cooperavam melhor com os pares tinham mais hipóteses de serem bem sucedidos. Neste cenário de interdependência, os humanos desenvolveram capacidades especiais, incluindo a divisão justa dos bens. “À medida que as sociedades se tornaram maiores e mais complexas, a interdependência dos seus membros também cresceu. Ou seja, o altruísmo não é o que nos leva a cooperar. Temos de cooperar de forma a podermos sobreviver e somos altruístas com o outro porque precisamos dele para sobreviver”, lê-se na Psychology Today.
Não temos outro remédio, portanto.
QUANTO MAIOR A AMÍGDALA, MELHORES SOMOS
O que levará uma pessoa a doar um órgão a um perfeito estranho? A resposta pode estar na amígdala um grupo de neurónios, agrupados em esfera, que regula os comportamentos sexuais e a agressividade. Pessoas classificadas como superaltruístas têm a amígdala 8% maior do que a média, o que implica que terão uma maior capacidade de reconhecer o medo no outro. Já nos psicopatas, a amígdala pode estar reduzida em 18 a 20 por cento. Serão incapazes de sentir empatia. Outras estruturas cerebrais parecem estar envolvidas no ato de fazer bem ao próximo, como o córtex pré-frontal (responsável pela tomada de decisão consciente) que, quando refreado, torna as pessoas mais generosas. Praticar o bem faz-nos felizes, reduz a dor, melhora o estado de saúde e diminui o risco de depressão, além de promover a interação social, de ajudar a combater a adição e de estimular a aprendizagem.
OS BONZINHOS TÊM MAIS SEXO
É habitual dizer-se que os mauzões, os rufias, têm mais sorte com as mulheres. Ou, por outro lado, que elas devem maltratar os pretendentes, se os querem manter por perto. Nada mais errado. Estudos recentes mostram que o altruísmo pode ser um fator determinante no momento da escolha de um parceiro. Num estudo publicado na revista British Journal of Psychology, conclui-se que a generosidade está diretamente relacionada com o sucesso na atividade sexual. No grupo estudado, verificou-se que quem mais dá teve mais parceiros ao longo da vida, mais sexo casual e mais parceiros sexuais no último ano. Uma variação de 7% a 28% em todas as variáveis comportamentais, a favor dos mais bonzinhos. Se isso não o convence a ajudar o próximo…