A esta distância, a edição de 2008 do guia de viagens Lonely Planet sobre a Síria parece de outro mundo. Terceira maior cidade do país, à época com mais de 800 mil habitantes, Homs tinha os habitantes “mais amigáveis”, um bairro cristão “acolhedor e descontraído” e parques verdes exuberantes. As esplanadas, as mãos sábias dos artesãos, os sabores e aromas típicos que se cruzavam nas ruas convidavam a uma “relaxante” visita a este “lugar maravilhoso”, pelo menos “por um par de dias”, lia-se naquelas páginas.
Este postal turístico de Homs foi rasgado em 2012. De um só golpe e com violência até então desconhecida. Os pergaminhos históricos da cidade e o seu exemplo de sã convivência entre cristãos e muçulmanos através dos séculos acabaram em mil pedaços. Reprimidos os protestos civis contra o regime da dinastia Al-Hassad, que governa o país há quase meio século, veio a guerra civil, também inflamada pelos radicais islâmicos.
Da cidade de outrora, ficou a casca, hoje sob domínio de tropas governamentais. Homs é terra queimada. Onde se contam histórias de sobrevivências a morder o osso e moram farrapos humanos rodeados de pó, cinzas e quase nada. Um quadro de tal forma chocante que, há semanas, durante uma incursão humanitária das equipas do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e do Crescente Vermelho sírio na cidade, o português Mário Salazar Águas, 39 anos, teve de respirar fundo. “Metade de Homs está destruída. Parece uma daquelas cidades alemãs do final da Segunda Guerra Mundial”, relata à VISÃO, via Skype, o especialista em sistemas informáticos e telecomunicações do CICV, com a voz ainda marcada pela experiência recente. “Vi pessoas a regressar aos restos das suas casas, onde não há pedra sobre pedra. As ruas estão destruídas, os prédios ruíram e dos apartamentos não sobra nada. É perigoso, mas as pessoas preferem voltar à memória do sítio onde viveram, à sua cidade, do que ir para um campo de refugiados”.
Um cenário assim é pasto sem lei. Nem moral. No final do mês passado, um hospital dos Médicos sem Fronteiras ficou parcialmente destruído. Sete pessoas morreram na sequência dos ataques que organizações humanitárias incluem na recente escalada de violência contra pessoal médico e medicamentos.
Nos últimos três anos, Homs viu de tudo. “Tudo” é aquilo a que habitualmente, por pudor, designamos imagens pouco recomendadas a olhares mais impressionáveis.
Durante esse tempo, o diário britânico The Guardian registou tiroteios e confrontos que soavam a uma prisão a céu aberto, dia e noite. No último período natalício, The Wall Street Journal mergulhou nesta cidade entregue parcialmente à escuridão, onde chegaram a morrer 100 pessoas por fim de semana, crianças incluídas, e os raptos se tornaram virais. Os resistentes alimentavam-se de sementes, folhas de limão, comida estragada e até trigo moído com fezes de ratos, que tentavam separar cuidadosamente. A fome e as doenças levaram homens, mulheres, crianças. E animais que eram sustento precário das famílias. “Sê paciente”, inspirou-se, a dada altura, um poeta sírio, tentando semear versos no desânimo de quem estava preso nas barricadas de Homs. “Os pássaros no meu estômago pensam nas bênçãos de Deus que esperam por ti”, escreveu.
Conquistas e esforços de uma vida, entes queridos, casas e carros desapareceram como se um tufão os levasse, dando um acento trágico àquela que já era conhecida por “cidade dos ventos”. Nela vagueiam ainda fantasmas, “pessoas sem nada. Literalmente nada! Ainda estão a tentar perceber o que lhes aconteceu e como vão lidar com isso”, descodifica Mário Águas.
Juntos, o Crescente Vermelho e a Cruz Vermelha já conseguiram, entretanto, fazer chegar alimentos à região e montar seis cozinhas comunitárias para servir refeições a duas mil pessoas por dia, de entre as mais vulneráveis. Sete dias por semana, seis mulheres trabalham dez horas seguidas para que nada falte. “Também vi famílias a inventar formas de sobreviver, improvisando lojinhas no meio dos destroços e correndo o risco de algo desabar em cima delas. Seria preciso limpar e reconstruir tudo, mas como? Não há dinheiro para isso”, lamenta o português.
AS BATALHAS QUE NÃO VEMOS
Mário Águas já não tinha o olhar virgem para dramas desta dimensão quando aterrou na Síria em junho de 2013.
Anos antes estivera no Afeganistão, Sudão e Filipinas, ora velando pela segurança das vastas equipas que liderava nos bastidores, ora testemunhando gestos de “profunda humanidade” mesmo nos mais desesperados contextos. O miúdo que queria ser astronauta e na adolescência foi radioamador, ficou lá atrás. Cresceu a ajudar os outros, nos voluntariados do INEM e da Cruz Vermelha, no Porto, e pode dizer-se que dele dependeram, nos últimos anos, inúmeras vidas. “Continua a fazer-me impressão lidar com pessoas que têm uma existência normal e, de repente, perdem tudo, incluindo o seu lugar no mundo. Mas tento ter um pensamento frio, não me deixar impressionar facilmente e concentrar-me no meu trabalho”. A tristeza, tal como o medo, “vêm sempre depois”, admite.
Embora com intervalos, a sua permanência no território sírio soma mais de dois anos. É um dos 350 funcionários do CICV, 70 dos quais estrangeiros, e o único português da organização no terreno. Os restantes, a maioria, são recrutados entre a população local. Todos, acentua, poderiam contar histórias de perdas e sofrimento.
À chegada, coube a Mário coordenar a rede informática e de telecomunicações dos quatro escritórios do CICV, situados em Damasco, Homs, Tartus e Aleppo. Nesta última cidade, no norte do país, abusou da sorte: esteve no topo de uma mesquita, com rockets a cruzarem-se por cima da sua cabeça, e ele a confiar que os atiradores furtivos iam respeitar o trabalho das organizações humanitárias. “Se calhar, não voltaria a fazer isto muitas vezes.
Este é, de facto, o local mais arriscado onde já estive”, resume, sem poder alongar-se em detalhes por respeito à independência e neutralidade que regem o código de conduta da Cruz Vermelha.
Da primeira vez que pisou território sírio, nem as ambulâncias do Crescente Vermelho comunicavam entre si. O problema resolveu-se via rádio, com dedo português. “Nestes países, normalmente está tudo colapsado, sem comunicações de espécie alguma. Temos de saber um bocadinho de tudo, das baterias para satélites aos painéis solares. E nisso, o improviso português faz milagres”, ri-se.
Mário regressou à Síria há dois meses para formar técnicos da organização humanitária árabe que trabalha em parceria com o CICV. “Eles, sim, estão presentes no país todo. Fazem o trabalho operacional e são quem, na verdade, arrisca a vida. Até agora, já morreram 40 voluntários. Nas ambulâncias, a caminho dos hospitais, para levar feridos ou doentes. Ou a entregar comida. São gente extraordinária, jovem e muito motivada. E têm pago um preço muito alto por fazerem o que podem pelo seu país”, descreve.
Não há mordaça possível para números que gritam bem alto o tamanho da tragédia humana: oito milhões de deslocados em abrigos temporários, perto de quatro milhões de refugiados em campos espalhados pela Síria e países vizinhos. “Há imensa gente a viver em condições mínimas. Mínimas! A situação continua a deteriorar-se e vem aí o inverno”, ilustra o técnico português. Só a dedicação e a contabilidade oficial da Cruz Vermelha, que já reforçou o orçamento e os efetivos na Síria, agasalham um pouco a frieza dos números. Até setembro, a organização distribuiu água potável a cerca de 16 milhões de pessoas, 90 por cento da população, enquanto 4,7 milhões recebiam comida. Mas mais um dia com vida é mais um dia de necessidades urgentes e perigos à espreita: “Mesmo quem trabalha connosco, com bons ordenados e a viver numa zona segura, não sabe como vai ser o dia seguinte, nem quando vai cair um morteiro ou de onde vem uma bala perdida. A tensão e os problemas sentem-se em todo o lado e as condições são muito más”, descreve Mário Águas, dando exemplos: “Há zonas sem eletricidade há dois anos e gente a viver em locais onde a água não pode ser bombeada. Hospitais e escolas não funcionam, nada funciona”, lamenta-se. Em zonas de Damasco, a capital, a energia elétrica é um luxo de quatro a oito horas por dia.
Por estes dias, o português da Cruz Vermelha sente-se a habitar a sombra de um país “que já foi autossuficiente, com todas as comodidades”. Ali se produziam petróleo, medicamentos, têxteis, azeite. “Os sírios eram independentes, tinham uma economia sólida, um custo de vida baixo, mas desde o início do conflito que as coisas têm vindo a deteriorar-se”. Um dólar corresponde a 350/360 libras sírias. Há dois anos, valia metade. “É uma diferença brutal”, reconhece. “Em Damasco, as pessoas nunca sabem se o salário deste mês vai ser suficiente. Todos os bens estão mais caros. Conheço gente que teve de queimar sacos de plástico e lixo em casa para ter algum calor, pois não consegue pagar carvão, lenha ou gás. E falta pouco para chegarem as temperaturas negativas”, acentua.
PARIS É LONGE DEMAIS
Com a guerra civil, a fome, as más condições sanitárias e de assistência, o elevado número de mortos em território sírio tornou-se diário. Por outras palavras: as vítimas não levam nome e foram vulgarizadas ao ponto de já quase não merecerem uma linha pé de página. “Isso talvez explique o facto de não ter ouvido por aqui qualquer comentário sobre os atentados de Paris nos dias que se seguiram a essa tragédia. Se calhar falou-se na Comunicação Social, mas não dei por isso”, revela Mário Águas. “Aqui, no Líbano, no Iraque, na Turquia, as mortes são o pão nosso de cada dia, algo infelizmente banal. Todos os dias recebemos na Cruz Vermelha relatos de atentados, bombas e explosões”, assinala. Avaliados a partir de Damasco e de outras cidades sírias, os bombardeamentos russos ou franceses sobre alvos militares do radicalismo islâmico, anunciados como cirúrgicos, parecem esconder outra realidade. “Não posso nem devo comentar em específico essas ações”, escusa-se o português. “Mas há sempre vítimas civis e muitos edifícios civis a serem destruídos. Isso gera mais deslocados crianças, principalmente que não têm onde viver. Aqui há zonas bombardeadas diariamente por todas as forças em conflito em inúmeras frentes de batalha”, assegura.
Os confrontos não atingem apenas os cidadãos mais vulneráveis. Mário conhece vários sírios de boa condição social e educação superior “que têm procurado alternativas, estudando e candidatando-se a bolsas no estrangeiro”. É o caso de Mahar Ali, uma síria de raízes palestinas, que trabalhou com o português na Cruz Vermelha e rumou a Paris. “Podendo, as pessoas qualificadas também não perdem a oportunidade de ir embora. Outros são forçados a ir, não têm onde ficar”, explica.
O calvário para tentar sair do país não escolhe credos ou classes. Mário teve notícia de vários casos de sírios com emprego à espera na Europa cujas viagens se transformaram numa odisseia. “Eles tratam de tudo, têm dinheiro para viajar e pagar a estadia. Vão às embaixadas em Beirute, apresentam os papéis todos, fazem os exames necessários nas línguas oficiais, mas o processo é tão demorado e complicado que optam por se meter num barco, como refugiados, quando não havia qualquer necessidade”, relata o português do CICV na Síria. A via ilegal tornou-se, ironicamente, mais fácil. “Complicam mais a vida a quem quer sair do país de forma legal para a Europa”, garante.
TRATADOS ABAIXO DE CÃO
Mário já partilhou várias viagens com colegas sírios, em férias ou formações no exterior do território. As histórias que testemunhou contaminam a sua voz, que soa agora num tom indignado, pouco dele, pessoa calma e pacata: “São tratados como lixo nos aeroportos e nas fronteiras. Lixo!”, reforça, uma e outra vez. “É revoltante ver como profissionais lidam com o seu semelhante. Fazem-no com um desprezo total só porque as pessoas estão, por vezes, em desespero”. Mário viu médicos, engenheiros e outros profissionais qualificados serem mandados para filas enormes, de forma ríspida e desdenhosa “só por terem passaporte sírio”. Na verdade, “essas pessoas não estão sequer a pedir nada”, esclarece o português. “Têm tudo: emprego, dinheiro, conta no banco, bilhete e vistos para a viagem. Às vezes só querem ir de férias e voltar. Se mesmo assim são tratados abaixo de cão, nem quero pensar como serão tratados os refugiados”. Os visados, esses, já nem reagem. “Nunca! De certa forma, interiorizaram o preconceito”. E por vezes até gracejam: “Ah, sim, pensam que somos todos terroristas”. Na verdade, assegura o português, “ficam desapontados, frustrados. Isto faz um mal terrível à autoestima das pessoas, que já anda muito por baixo”.
Quando finalmente se vê a passear com amigos sírios pela Europa, Mário garante, com alguma ponta de ironia, que “ninguém consegue dizer de onde eles são. Nem pela conversa, nem pelo aspeto”. Mas o preconceito tem perna longa. E Mário paciência a menos. No geral, diz, “o Ocidente olha para os árabes como um todo, um grupo em que nove em dez são terroristas. Mas há culturas, religiões e maneiras de pensar completamente diferentes”, esclarece, antes de mais um regresso à terra-mãe.
Sim, quando ler estas linhas, já Mário Águas deverá ter desfeito as malas. Estará de volta a Portugal por tempo indeterminado.
Talvez tenha rumado ao Minho, onde tem casa, para uns dias de descanso, ou optado por praticar escalada, canyoning, rafting ou outros desportos radicais de que é um fiel executante. Para ele, a possibilidade de “viajar ou entrar em qualquer sítio sem temer ser raptado, preso ou morto a caminho do trabalho é uma dádiva”. A televisão estará quase sempre desligada, sobretudo à hora dos telejornais. “Desligo completamente o cérebro quando ouço tanta informação e desinformação sobre o conflito sírio”, assume, desconfortável com a banalização da perda de vidas humanas naquele lado do mundo. “A maior parte das pessoas que fala sobre o assunto não faz a mínima ideia do que está a dizer”.
Ele sabe. E por muitos anos que viva, não esquecerá.