Por isso digo que vagabundo é uma palavra muito mais romântica do que sem abrigo. Quem é que, de vez em quando, não pensa em deixar tudo e ir por aí, sem eira nem beira, de bolsos vazios e coração cheio, dono e senhor da vida airada, só porque está cansado do mundo e dos acéfalos que o habitam. (Eu nem preciso tanto! Sou tomada por essa vontade, sempre que pago o IMI ou o condomínio). Errante, multívago, nómada por opção ou condição é algo bem diferente do cair em desgraça, por motivos vários, e ficar sem tecto que o abrigue. E como se não fosse suficiente, deixar de ser inquilino à força, passar a ser julgado pelo aparente; passar ao estigma social, vítima de todos os pré-conceitos antes de conhecerem a pessoa, a sua história de vida. Felizmente ver não é conhecer. Felizmente!
E como é que a comunicação social aborda a questão dos semabrigo? É o que está em cima da mesa, já amanhã, às 14 horas, no Museu Nacional Soares dos Reis, numa iniciativa promovida pela Santa Casa da Misericórdia do Porto, em parceria com diversas organizações, nomeadamente o Núcleo de Intervenção e Apoio às Pessoas em Situação de Sem Abrigo, que trouxe à cidade invicta o projecto “As Vozes do Silêncio”, um espaço de tertúlia que é imprescindível conhecer.
Ainda esta semana a SIC deu conta da vida de um sem-abrigo das ruas de Lisboa. Perivaldo. Peri da Pituba, estrela do futebol brasileiro nos anos 70. E o que podemos constatar nesta e noutras histórias que a comunicação social desvenda é o que, ainda que de forma breve, nos revelam estudos sobre este problema social. Não se trata “apenas” de perder a casa de betão e armações metálicas! É que ficar sem tecto é muito mais do que a ausência de obstáculos entre o nosso olhar e o céu. Tornar-se sem abrigo, crónico, periódico, temporário, total, de curta ou longa duração, se quisermos simplificar é, em muitos casos, perder tudo, até a dignidade. Até os sonhos, os desejos e os laços afiliativos que dão ao individuo o sentimento de pertença, seja a que grupo for. Enfim! Diversas teorias, diversas definições conceptuais para um fenómeno mundial que preocupa investigadores, voluntários, organizações que trabalham com eles e para eles. Quando os órgãos de comunicação social noticiam que sem abrigo morrem de frio ou de fome ou de solidão, acredito – quero mesmo acreditar – que o fenómeno suba de lugar nas agendas políticas e conduza à acção. Neste aspecto, a comunicação social pode (e deve) servir de catalisador; de pressão. Já que, algumas vezes, tornar-se sem abrigo, é tornar-se invisível aos olhos de alguns. E como se não bastasse a dificuldade em adoptar um só conceito, dada a abrangência e diversidade das situações há, ainda, a dificuldade acrescida da estatística apesar de, a olho nu, sabermos que esta população tem aumentado, contribuindo para colocar em causa a coesão social.
De acordo com a Federação Europeia das Organizações de Apoio aos Sem-Abrigo (FEANTSA), Portugal, Espanha, Grécia e Itália são os países mais atingidos pelo fenómeno e o desemprego é a causa principal. Segundo dados da FEANTSA (2000), “o número de sem-abrigo tem tido um aumento constante. Estima-se em dezoito milhões de europeus (uma pessoa em 20) nos 15 países da União Europeia, que estão impedidos do acesso a uma habitação condigna”.
Em Janeiro deste ano, o Parlamento Europeu voltou a pedir à Comissão Europeia que elabore uma estratégia comum para os sem abrigo, tendo aprovado, em Estrasburgo, uma resolução nesse sentido. E se o aumento de pessoas sem abrigo, nomeadamente jovens tem aumentado na velha Europa imagine-se, por exemplo, nos Estados Unidos onde o modelo social nada tem a ver com o nosso (por enquanto). De qualquer forma, ao ler “O solista”, de Steve Lopez, jornalista do Los Angeles Times, notei que as causas que podem levar uma pessoa a tornar-se sem abrigo são comuns, demasiado humanas, nomeadamente as doenças do foro mental. Por este livro ficamos a conhecer a vida de um outro sem-abrigo, Nathaniel Ayres, músico brilhante, ex-aluno da Juilliard… E é assim que Lopez narra uma história que dá a conhecer o lado interior das ruas de Los Angeles, alertando para o problema das doenças mentais da população sem abrigo. Que a sociedade tem e terá de enfrentar. Tantas vezes sem condições; outras tantas, sem conhecimento…
Tudo isto para dizer que sim, que o debate proposto é muito pertinente. Por um lado os órgãos de comunicação social podem alertar, fazer pressão, catalisar a acção de quem deve e pode agir no sentido de dar resposta política a este flagelo social. Por outro lado, recorrendo à reportagem, o jornalista consegue sensibilizar para histórias mais particulares, individuais que servem para dar visibilidade a pessoas tantas vezes literalmente invisíveis. E atenção, por favor, não é que todos os sem-abrigo tenham que ter atrás de si, histórias de sucesso a merecerem ser contadas pela curiosidade que suscitam. Pelo insólito. Não! Também existe o contrário: vidas que conseguiram sair das ruas e se transformaram em estrelas de cinema, por exemplo. Ou pura e simplesmente conseguiram ser pessoas felizes. Anónimas e felizes. O que quero dizer é que qualquer vida, a mais banal, tem uma história que merece respeito. O que quero dizer é que amanhã, podemos ser nós, na berma do passeio, acamados entre cartões de papelão, sem nenhum obstáculo entre o nosso olhar e o céu e isso não tem nada de romântico. Só de solidão, só de desespero, só de sem abrigo. Porque a fronteira entre este e o outro lado é mesmo muito maleável.
De resto, à organização de tão interessantes tertúlias, deixo o desafio de um dia destes abordarem o tema dos sem abrigo pela literatura. Para que possamos falar de outras experiências que também nos ajudam a compreender melhor o fenómeno. Jornalistas e escritores, escritores jornalistas, poetas e romancistas sempre se interessaram por estas matérias, alguns ao ponto de as viver e escrever. William Henry Davies, deixou-nos com “The Autobiography of a Super-Tramp”. As necessidades humanas básicas são intemporais mas hoje, um sem-abrigo, tem à sua volta uma série de problemas que, por exemplo, não tinha há cem anos. Nessa altura, um vagabundo não era um flagelo social. E escolher entre pagar a impressão dos próprios poemas em vez de pagar uma renda, creio, é um modo de vida e não uma fatalidade. Ou, então, analisar a obra em que George Orwell resolveu submeter-se à pobreza extrema com o intuito de a narrar. Ou, ainda, pegar na autobiografia do meu querido Charles Bukowski, esse quase sem-abrigo, e sentir que mesmo em situações limite há um pássaro azul no nosso coração. Sim… there’s a bluebird in my heart that wants to get out…