Faltam poucos minutos para que David, Sofia, Rui, Tozé e Paulo ocupem os seus lugares, no palco do Coliseu Micaelense, em Ponta Delgada, ilha de São Miguel. A entrada em cena perante plateias cheias é um ritual que já foi rotina quase quotidiana, repetida até à exaustão, entre 1998 e 2001, os anos de glória dos Silence 4.
Da belíssima sala de espetáculos em círculo, inaugurada em 1917 e recuperada em 2004, chegam até aos camarins acordes abafados de canções dos Pixies e o típico bruaá do público, antes de um concerto. Nos camarins, a descontração dos músicos é, aparentemente, total. O baixista Rui Costa, 43 anos, de guitarra acústica em punho, em pé, encostado à parede, toca de forma exemplar e despreocupada os acordes de Blackbird, dos Beatles, e diz “ainda um dia gostava de ir para uma banda onde tocasse só guitarra…”
“Então, primeiro aprendes!”, dispara, rápida, Sofia Lisboa, 37 anos. Gargalhada geral. O riso e as piadas alternam com momentos de silêncio que podem ser interpretados como esforço de concentração, mas também podem não ser nada disso. Pouco antes, do alto dos seus 5 anos, a filha do baterista Tozé Pedrosa, 42 anos – o ex-Silence 4 que mais se afastou da música, para trabalhar na área da consultoria e gestão e dar aulas no Instituto Politécnico de Leiria -, já tinha perguntado a David Fonseca, 40 anos, se ia cantar aquela “Pipiri, pipiri, piri piradinha…”.
O vocalista dos Silence 4 teve alguma pena de a desapontar, mas não lhe criou falsas expectativas. Sentados lado a lado, David e Sofia, acertam pormenores, olhando para o alinhamento – “Aqui falas tu com o público, eu não vou dizer nada.” A conversa mais animada, nos bastidores, enquanto o público enchia a sala, era sobre os jogos de matraquilhos da véspera, no hotel. David arrependia-se de não ter parado de jogar quando estava a ganhar por uma margem confortável (e, sim, acabou por perder). Paulo Pereira, que, nesta minidigressão acompanha os Silence 4, tocando teclas e acrescentando algumas subtilezas eletrónicas ao som do grupo, não perdoa: “E parece que está aí um gajo qualquer que escreveu Walk Away When You Are Winning, ou lá o que é…”, referindo-se à canção de David Fonseca, com esse título, que aconselha, precisamente, a saber sair por cima, quando estamos a ganhar…
Foi o que os Silence 4 fizeram, em 2001, apenas com dois discos editados. O primeiro, Silence Becomes It (1998), com cerca de 240 mil exemplares vendidos, foi (com Viagens, de Pedro Abrunhosa, de 1994) um dos discos portugueses que chegaram a mais pessoas e mais marcaram a década do 90 do século passado, tornando os músicos da banda de Leiria estrelas instantâneas e improváveis. E agora, ali estão. A noite é deles. O público chama-os.
‘Quantos são? Quantos são?’
Entre tanta boa disposição, ninguém diria que tudo começou no anúncio de uma tragédia. Durante anos, David Fonseca respondia, invariavelmente, com um rotundo “não” à repetida pergunta sobre uma eventual reunião dos Silence 4. “Não fazia sentido”, dizia. “E continua a não fazer”, dizem hoje, em coro. Mas estes concertos são, verdadeiramente, especiais, excecionais. Nasceram na cabeça de Sofia Lisboa, em 2011. Já tinha tudo muito bem pensadinho quando, do nada, falou da sua ideia a David. Uns meses antes, tinha-lhe sido diagnosticada uma leucemia linfoblástica aguda. O seu horizonte escureceu de repente. Tinha cerca de 10% de hipóteses de resistir à doença; zero, se não encontrasse um dador de medula óssea totalmente compatível. “Só percebi a gravidade da minha doença quando chegaram os resultados sobre a compatibilidade da medula da minha irmã: a médica e os enfermeiros disseram-me que era compatível com emoção, estavam numa felicidade extrema…” No início estava só decidida a enfrentar mais um desafio, “mais uma aventura”: “‘Bora lá!” Rui Costa recorda-se do SMS que recebeu por esses dias: “Eu sou forte, quantos são? Quantos são?” Mas a luta ia revelar-se difícil.
Do seu manual de sobrevivência fazia parte o projeto de voltar a juntar os Silence 4: “Se se concretizasse, era uma forma de festejar e de poder ter uma voz ativa por uma causa… E era, também, claro um objetivo a que me podia agarrar.” David recorda que “quando a ideia surgiu não havia qualquer hipótese de ser concretizada imediatamente… E isso era duro”. Mas, provando que não há “nãos” definitivos, e que muitas coisas na vida acontecem contra, ou “apesar de”, as nossas decisões, a reunião dos Silence 4 nasceu logo ali – irresistível, obrigatória, urgente. “Este tipo de coisas faz unir as pessoas”, diz Rui Costa. David: “Com os Silence 4 vivemos uma coisa tão incrível, anos que alteraram as nossas vidas para todo o sempre… Quando a Sofia ficou doente, sentimos ‘um dos nossos está mal’, e isso juntou-nos, claro.”
‘Sofia! Sofia!’
“Por favor, cantem connosco, nós podemos esquecer-nos das letras…”, pediu David, bem-humorado, logo no início do concerto. No Coliseu Micaelense, os Silence 4 já tocaram várias canções, incluindo êxitos como a obrigatória versão dos Erasure Little Respect, Borrow e My Friends, quando Sofia se dirige ao público recordando “o período menos bom” por que passou e apresentando uma canção que ouvia muitas vezes e lhe deu força: Angel Song. “Tinha dito ao David que se eu não pudesse estar aqui, gostava que o público cantasse a minha parte…” Palmas. Ela está ali.
I guess I was trying to keep me alive / But once I was dead there was nothing to do beside / Picking me up and lying me down / Waiting for some angel / To wake me and say to me / “Hello. Don’t be scared. I want you to know, you’re not dead.
Uma boa parte do público sabe a letra. E canta-a, misturando a sua voz coletiva com a voz de Sofia Lisboa. Mas, a certa altura, quase no final da canção, esse mesmo público prefere ter uma voz própria, em uníssono: “Sofia! Sofia! Sofia!…” Um roadie atencioso entra no palco com lenços de papel na mão; muitos espectadores também precisavam de secar os olhos.
No dia seguinte, ao almoço, à volta de um famoso cozido das Furnas, Sofia brincava: “Chorar, eu?! Eu não chorei…” E mais a sério: “Eu percebo quando se diz que a melhor parte dos sonhos é a tentativa de os alcançarmos, mas, neste caso, a melhor parte foi mesmo a concretização; e estar ali, em cima do palco, foi exatamente isso: a concretização de um sonho.” E teme soar “demasiado lamechas” ao dizer: “É mesmo como se tivesse uma segunda vida, uma segunda oportunidade; e esta segunda vida vai ser muito mais virada para os outros.” Simbolicamente, antes ainda do espetáculo de Ponta Delgada (no sábado, 15 de março), o verdadeiro regresso dos Silence 4 aconteceu num showcase, no Instituto Português de Oncologia, em Lisboa, e do valor de cada bilhete vendido para esta minidigressão (Açores, Madeira, Guimarães e Lisboa – “quisemos que todos tivessem oportunidade de nos verem”), um euro reverte a favor da Liga Portuguesa Contra o Cancro. “Tivemos uma longa reunião com a Liga”, revela David, “e concluímos que, no futuro, podemos fazer outras coisas pontuais, mesmo enquanto Silence 4, até porque, pelo que nos disseram, uma das suas grandes dificuldades é chegarem a pessoas das gerações mais jovens.”
Deste falso regresso – e a realidade segue dentro de momentos… – faz, também, parte a edição da caixa Songbook 2014, que reúne os discos de estúdio Silence Becomes It e Only Pain is Real, e ainda um CD de “raridades” (demos, remixes, gravações ao vivo e uma versão perdida de Letter to Memphis, dos Pixies, que Sofia não se lembra já de ter gravado…). Está ali o resumo de três anos loucos na vida de três rapazes de Leiria e de uma miúda a quem David prometeu ligar, “nem que seja daqui a um ano”, a convidá-la para a sua banda – e ligou mesmo, um ano depois de a ter ouvido pela primeira vez. Juntos colecionariam recusas de todas as editoras, grandes e pequenas (“Levámos tampas de todas, e nas demos que enviávamos já lá estavam o Borrow e Little Respect…”, recorda David, divertido). Até os aceitariam, mas se cantassem em português. Eram uma entre muitas bandas nacionais a procurarem algum reconhecimento, chegar ao público quando a internet ainda estava na pré-história… Depois, a presença da tal versão dos Erasure na coletânea Sons de Todas as Cores, em 1998, virou-lhes os dias de pernas para o ar, com um sucesso totalmente inesperado. Antes ainda de poderem conversar sobre o que lhes estava a acontecer, tinham uma agenda carregada que os fazia percorrer o País de norte a sul. “Até nos assustou… Uma vez andava às compras, num Intermarché, e um Pai Natal brasileiro que estava lá a fazer animação disse ao microfone: ‘Está o baixista dos Silence 4 na secção de queijos, não percam a oportunidade de lhe pedir um autógrafo’!”, recorda Rui Costa. Isto de estar vivo tem muito que se lhe diga.