Tenho 56 anos e desde o início deste ano comecei a ouvir vozes. Não é que me preocupe com esta experiência nova. Desconheço se isto é normal ou não. E não me sinto à vontade para partilhar isto com a minha filha mais nova, com quem vivo temporariamente, desde que me separei.
Costuma acontecer-me durante a manhã, quando estou entretido nas minhas rotinas. “Toma cuidado”, “Hoje é melhor cantares, para conseguires aguentar o dia”. Outras vezes acontece à noite, estou eu no meu quarto, antes de adormecer. Costumam ser memórias de conversas do dia, que tive ou que ouvi, misturadas com vozes que parecem fazer parte de um sonho, sem o ser.
Fui ao médico, que me perguntou se eu tinha sofrido algum acidente, se tinha problemas de audição ou zumbidos. A tudo respondi que não. Sugeriu-me que fosse a um psiquiatra ou neurologista e fizesse alguns testes. Estou a atravessar um período de aperto económico e ainda não marquei consulta. Ninguém que eu conheça, na minha família, falou de situações como esta. É normal ou estarei mal da cabeça?
As alucinações auditivas, as vozes de que fala, eram até há pouco tempo associadas a sintomas de perturbações mentais, como a esquizofrenia. Nos últimos anos, o assunto tem vindo a merecer o interesse dos investigadores na área da biologia e da química cerebral e os resultados sugerem que as “vozes” que essas vozes internas (com um grau variável de intensidade e frequência) são mais comuns na população do que se pensa.
O neurologista americano Oliver Sacks é um dos defensores desta hipótese e até publicou um livro sobre o tema, advogando que se trata de um fenómeno que acontece em pessoas “normais”. Já no século passado, o famoso psiquiatra e psicanalista Sigmund Freud relatava, nos seus escritos, que ouvia o seu nome a ser chamado por uma voz querida, nada intrusiva nem ameaçadora. Por vezes, elas fazem parte do discurso interno de cada um, e parecem vir de fora quando, de facto, são inerentes ao funcionamento cerebral e associadas a determinadas circunstâncias e estados de espírito (ou de consciência).
Ainda que permaneçam um mistério, as vozes que alguns de nós ouvimos e com as quais aprendemos a viver podem ser consequência de uma situação de stresse (por exemplo, zumbidos), resultar da presença de um agente inflamatório (neste caso, tendem a desaparecer quando a causa deixa de existir), ou serem um sinal de problemas neurológicos. No seu caso, parece não haver antecedentes na família nem na sua história de vida, embora nunca tenha feito um despiste clínico.
Não se tratando de nenhuma destas situações, é possível que essa “presença” auditiva seja uma variação do seu funcionamento interno, nesta fase específica do meio da vida, em que está a atravessar alterações emocionais e, presumo também, alguma solidão. Tal como revelam as últimas pesquisas, as alucinações auditivas envolvem a ativação de várias zonas do cérebro e tendem a surgir quando temos as defesas reduzidas (de manha, ou à noite, quando está sozinho). Desde que sejam “boas companheiras” e faça o despiste clínico, não é caso para achar que “está mal da cabeça”. Como se costuma dizer ( e as pesquisas parecem confirmar) “tem os seus dias”.