Embora com incertezas, a mensagem que tentamos passar é de esperança e de otimismo. De que adianta alimentar ainda mais a tristeza das pessoas? De que adianta falar da crise? Haja esperança! Respondemos nós e todos os voluntários que andam nas ruas.
O que mais revolta? Tudo! É todos termos obrigações, mas os direitos não serem iguais nem divididos da mesma forma. Histórias tão reais e que muitos conhecem, pelo menos aqueles que dedicam uma parte do seu tempo a andar pelas ruas e não ficam em gabinetes e ler relatórios na diagonal, nem a tomarem notas dos números que são falados por alto.
Aqui vos deixo a história real do Macarroni e de um ser lindo que vi como meu avô. Estava na rua, deitado sempre na mesma posição e numa das primeiras saídas, em tom de brincadeira, disse-nos: “Hum, menina… Sopa sim, mas Vladimir quer macarroni, adoro macarroni. Traz, menina?” Respondi: “Sim traremos macarroni!”
O sorriso malandro foi contagiante. Ao longo desse tempo em que partilhámos as histórias da sua e da nossa vida, em que me “confundiu” com a sua filha, apercebemo-nos de que para além do macarroni havia muito a fazer. Todos os dias lá íamos tratar das feridas que tinha na perna. Doía? Sim, doía. Cortar a meia para a descolar da ferida, lavar a perna e o pé, aplicar a pomada que ele próprio tinha mas não a conseguia colocar. Fazíamos o que conseguíamos, também não o fariam?
Passados alguns meses, já em consultas e com o macarroni a marcar presença, recebemos um telefonema dando conta de que o Vladimir tinha dado entrada no hospital e de que ficaria internado. A rua e a lei da sobrevivência é dura e não soubemos de mais nada.Entrei na enfermaria acompanhada pela assistente social e por outro coração. Ficámos olhar-nos meias perdidas no tempo. O Vladimir não nos reconhecia. Olhava para nós como se fossemos estranhas.
Tinham passados alguns meses de conversas, lágrimas e também risadas e não nos “via”? “Olá Vladimir, estás lindo!”, disse-lhe eu. A sua expressão mudou completamente, sorriu, esticou-me a mão: “Menina Bábarra?”, perguntou. “Sim, Vladimir sou eu, a Bárbara!” E ele viu-me. “Agora sim Bábarra, eu vejo-te , antes eram só os ouvidos que te viam e sabia que estavas por perto.”
Felizmente, pensei eu, agora o Vladimir vai recuperar. Temos que “trabalhar” para que não volte às ruas, há que tudo fazer para que seja uma nova etapa e que comece hoje! Enquanto tentava perceber o que podia ser feito, a assistente social procurava convencê-lo a ir para um quarto ou centro.
Primeira tentativa falhada: “Na rua tenho amigos”, respondeu ele. Após breves minutos a sós e a tentar fazê-lo compreender do que seria o melhor: “E se for, tu abandonas-me?”, questionou-me. Senti um aperto na barriga porque tal nunca me tinha passado pela cabeça. Como seria possível abandonar alguém? “Claro que não. Estarei lá, estaremos todos e tu não vais ser abandonado nem estar só, prometo!”
De facto, não o abandonei, nem nenhum dos seus amigos. Mas no dia 16 ele acabou por nos abandonar, sem nada contar, sem nada o prever. Entre hospital, instituto de medicina legal, vários telefonemas e muita revolta, tinha a sensação de que tinha abandonado o Vladimir, todos o tinham abandonado. E quando digo todos, é mesmo isso. Até o Estado, para o qual descontou durante anos. Seria dado como indigente, como acontece a muitos sem abrigo e outros amigos que não têm quem os defenda e reconheça nestas alturas.
Lembrei-me da promessa feita: “Claro que não. Estarei lá, estaremos todos e tu não vais ser abandonado nem estar só, prometo!”
Graças à solidariedade e a grandes Corações a quem recorri e que me tinham ouvido a falar do Vladimir na última conferência da Visão Solidária, o Vladimir descansa em paz, teve direito à última homenagem e todos os amigos se despediram dele com um até já, de lágrimas nos olhos e pétalas de rosas brancas.
O Vladimir não foi abandonado e agora descansa. É mais uma estrela a brilhar no céu. Mas aqui fica a pergunta: e os outros Vladimir? Onde estão? Quem os abandonou?