Impossível imaginar. A Cinderela, porque foi o nome que lhe demos, esteve todo esse tempo a partilhar as escadas e o cimento de um pedaço de rua. Um pedaço de rua que a obrigavam a dormir em posição fetal coberta por plásticos e onde as almofadas eram substituídas por papelão.
Encontrámos esta Cinderela no meio dessa vida amargurada, nessa vida que não sei se assim se pode chamar. Conversas diárias – motivar era urgente, alimentar uma necessidade extrema – foi assim que fomos “trabalhando” a nossa Cinderela.
Era impensável para mim e para todos imaginar tanto tempo sem sentir um abraço desinteressado, uma palavra para a despertar. Impensável e impossível de imaginar que, por causa do seu tom de pele e pelo facto de estar na rua, fosse rejeitada por quase todos.
Com vergonha, contou-nos que sentia falta de água (de um banho), que o seu corpo a desejava mas ela não tinha coragem de sozinha combater e enfrentar a rejeição que sentia. E agora o que fazer? E se fôssemos acompanhá-la, será que aceitaria? Será que resultaria? Aceitou, foi acompanhada e resultou. Ao início com receio. Cada gesto era um pedido de ajuda. Ficámos ao seu lado quando finalmente, depois de alguns meses, o seu corpo voltou a sentir a água. Ao ver-se ao espelho exclamou: “Saudades de mim, saudades de me ver!” Rodopiava, rodopiava e nós sem percebermos o que na verdade estava a acontecer. Rodopiava sobre si e abria as mãos e nós sem saber se teríamos feito algo de errado. “Cinderela, estás bem?”, perguntámos. “Estou a sentir o vento. O vento está a entrar novamente no meu corpo. Como é bom sentir este cheiro e este vento!”
Ninguém imaginava como era bom, porque não se dá valor a coisas tão “pequenas” como um duche quente e água limpa. Coisas pequenas para nós mas tão grandes e tão importantes para quem está nas ruas.
Durante vários meses acompanhámos esta Cinderela. O ritual do banho mantinha-se mas, aos poucos, fomos dando espaço, fazendo-a acreditar que já era capaz de entrar e fazer tudo sozinha. Desamarrámos o cordão que estava atado a nós e a confiança foi crescendo.
Hoje, sozinha, já vai tratar de si. Já acredita que pode e que tem direitos. Acredita que é linda e continua a ver-se ao espelho para que não volte a ter saudades de si!