“À medida que passava mais tempo no espaço, os sintomas ao regressar à Terra eram piores”, contou o antigo astronauta, Scott Kelly, em entrevista à The New Yorker, após regressar, em 2016, a bordo da nave espacial Soyuz, de uma missão de quase um ano na Estação Espacial Internacional. Acompanhado por Mikhail Kornienko e Sergey Volkov, também tripulantes na missão espacial, a nave em que Kelly seguia entrou na atmosfera a mais de 27 mil quilómetros hora, resultando num efeito seis vezes a força da gravidade sobre os astronautas.
Kelly – que já deixou a vida no espaço – foi o tripulante que mais tempo passou no espaço, com quatro missões completas, cada uma mais longa que a anterior, num total de 520 dias fora do planeta Terra. Nesta viagem em específico, realizou o voo espacial mais longo de todos os americanos: 340 dia na Estação Espacial Internacional. No entanto, quanto mais tempo no espaço, maiores efeitos no seu organismo quando regressou a casa, em Houston, no Texas.
Os efeitos que as viagens espaciais têm no corpo dos astronautas têm sido objeto de estudo da comunidade científica há décadas. Sabe-se, por exemplo, que a quase ausência de peso no espaço resulta no alongar da coluna vertebral e provoca a perda de músculo e ossos, razão pela qual os astronautas têm de fazer exercício físico com frequência. Kelly regressou à Terra com mais cinco centímetros do que quando partiu e com uma massa corporal 7% menor. Para além das náuseas e tonturas, inicialmente sentidas, Kelly afirmou sofrer ainda de outros sintomas, como dores nas articulações – resultado da força da gravidade, desconforto, erupções cutâneas no pescoço e costas e muito inchaço nas pernas.
Antes da missão espacial, Kelly e o irmão gémeo, Mark Kelly, senador do estado do Arizona, participaram num estudo – o NASA Twins Study – com o objetivo de comparar os efeitos fisiológicos de missões de longa duração no organismo dos irmãos. Nos meses que se seguiram ao regresso de Kelly, a equipa de mais de oitenta investigadores, de 12 universidades, testaram várias amostras biológicas e chegaram a conclusões preocupantes. Em primeiro lugar, os testes cognitivos revelaram uma diminuição da velocidade e da precisão mental de Scott. Já as paredes dos seus vasos sanguíneos engrossaram e estavam inflamadas o suficiente para provocar um ataque cardíaco ou um choque sético. Foram também detetadas proteínas – que se encontram sobretudo no cérebro – na sua corrente sanguínea, o que sugere que a barreira hematoencefálica do astronauta perdeu alguma da sua integridade. A visão de Kelly também se deteriorou, ao ponto de o mesmo necessitar de óculos. Já na genética, cerca de nove mil genes do astronauta – alguns dos quais poderiam aumentar o risco de cancro e de problemas no sistema imunitário – sofreram alterações. E os seus telómeros de Kelly – estruturas que existem nas extremidades do ADN e que, por norma, encolhem à medida que a pessoa envelhece – aumentaram enquanto esteve no espaço, mas contraíram, após o seu regresso, ficando até mais curtos do que quando ele partiu na missão.
Mathias Basner, professor de psiquiatria na Universidade da Pensilvânia e um dos investigadores envolvidos no estudo dos irmãos Kelly, defende que as viagens espaciais podem provocar alterações estruturais no cérebro humano apesar de a maioria ser “provavelmente reversível”. Durante a microgravidade – também conhecida como ausência de peso – ocorre a deslocação de sangue a parte superior do cérebro, comprimindo a zona responsável pela absorção do líquido cefalorraquidiano, provocando um inchaço das cavidades cerebrais e levando ao aumento da pressão intracraniana. No mesmo sentido, certos biomarcadores associados a doenças neurodegenerativas parecem aumentar significativamente após uma viagem de longa duração ao espaço, o que pode “sugerir que algo de muito mau está a acontecer no cérebro”, disse Basner.
Até hoje, foram ao espaço menos de setecentas pessoas, na sua maioria homens. No entanto, estima-se que, nas próximas décadas, este número possa crescer exponencialmente à medida que cada vez mais empresas – como a SpaceX, a Blue Origin e a Virgin Galactic – procuram realizar mais missões espaciais. “A dada altura, vamos ter milhares de pessoas a viver ou a trabalhar no espaço”, contou Christopher Mason, principal investigador do NASA Twins Study, à The New Yorker. “Precisamos de perceber como o fazer em segurança”, acrescentou.
A investigação sobre os irmãos Kelly enfrentou, contudo, um desafio fundamental para a investigação espacial: a dimensão da amostra. Outros estudos, também liderados por Mason, focam-se nas mudanças provocadas pela estadia de longa duração no espaço. É o caso das alterações encontradas na tripulação da Inspiration4.
Inspiration4 e o sonho de chegar a marte
Em 2021, descolou da Flórida a missão privada Inspiration4, promovida pela SpaceX, com astronautas civis. No Cornell Aerospace Medicine Biobank (CAMbank), onde Mason trabalha, foram estudados os efeitos que a visita ao espaço teve no corpo destas pessoas, através de amostras de saliva, sangue, pele e urina. A tripulação do Inspiration4 esteve no espaço apenas três dias, o que parece ter sido tempo suficiente para que os muitos efeitos secundários das viagens espaciais se fizessem sentir.
Enquanto em órbita, Sian Proctor, uma das tripulantes, precisou de tomar medicação para controlar as náuseas que sentia. Já Hayley Arceneaux, que com apenas 33 anos se tornou na norte-americana mais nova a orbitar a Terra, sentiu dores de cabeça, congestão nasal e dores intensas nas costas quando a coluna vertebral se esticou na microgravidade. Após a aterragem, foram encontrados alguns problemas cognitivos, como dificuldades ao nível da memória.
Mason e a equipa detetaram modificações genéticas nas células imunitárias, alterações na organização do ADN e picos de inflamação no organismo destes tripulantes. Em todos os astronautas foram também encontrados marcadores de stress oxidativo – que ocorre quando há um desequilíbrio entre a produção de compostos que não são úteis para a vida (radicais livres, água oxigenada e outros) e a sua remoção do organismo – uma condição frequente quando a radiação danifica o ADN. Os testes revelaram ainda um aumento do número de vírus na pele e mudanças na composição das bactérias da boca e do intestino.
A maior parte destes efeitos na saúde acabaram por desaparecer, escreveu a equipa de investigação num artigo publicado na revista Nature, no ano passado, mas algumas condições – como danos no ADN, por exemplo – só apareceram depois do regresso da tripulação à Terra. “O corpo está a adaptar-se a um ambiente invulgar e complexo de formas invulgares e complexas”, explicou Mason. “Estamos a começar a ver uma assinatura biológica do espaço. Em breve, poderemos dizer: “Isto é o que te vai acontecer se receberes uma dose de três dias de espaço. Isto é o que vai acontecer com uma dose de três meses”, acrescentou.
Mason e os seus colegas querem neutralizar os efeitos mais perigosos das viagens espaciais para a saúde. “Fazemos tudo o que podemos para manter os astronautas seguros através da engenharia dos foguetões e das naves, mas será que poderíamos criar algumas das proteções no interior, dentro dos próprios astronautas?”, escreveu Mason no seu trabalho The Next 500 Years: Engineering Life to Reach New Worlds, de 2021.
Com todos estes efeitos já reconhecidos, a questão impõe-se:
Se o corpo humano já sofre tanto apenas com viagens ao espaço, aguentaria uma estadia em Marte?
Apenas 24 pessoas já saíram da órbita baixa da Terra – relativamente protegida da radiação espacial e das falhas de comunicação. Ainda assim, os EUA e a China apostam em viagens tripuladas a Marte e Elon Musk, o CEO da SpaceX, que disse que gostaria de morrer lá. A SpaceX vai lançar um foguetão Starship em direção a Marte já em 2026 e Musk acredita que a aterragem de humanos no planeta vermelho pode vir a acontecer em 2029, embora “2031 seja mais provável”.
Com apenas metade do tamanho da Terra, o núcleo de Marte – feito de níquel e ferra – arrefeceu e solidificou. Hoje, o planeta, que outrora tinha um campo magnético semelhante ao do nosso – com uma atmosfera que retinha o calor e bloqueava radiação – não possui essa proteção magnética e a sua superfície é bombardeada por radiação solar e galáctica. Deste modo, habitar Marte exigiria uma transformação monumental do planeta, sendo um dos maiores obstáculos a ultrapassar a radiação, objeto de estudo de várias investigações.
À altura que se encontra a Estação Espacial Internacional, a radiação, proveniente de várias fontes como estrelas, vulcões ou certos elementos (como o urânio, por exemplo) e constituída por partículas ou ondas que atravessam o espaço a grande velocidade, é considerada segura para os astronautas. Existe a radiação não ionizante e a radiação ionizante, que penetra nos tecidos e danifica o ADN ao transformar os átomos estáveis em “radicais livres” instáveis que chocam com o material genético, causando mutações e ligações inadequadas. “A radiação é um dos potenciais obstáculos dos voos espaciais”, referiu Basner. “E é muito difícil protegermo-nos dela.”
Numa investigação realizada por Afshin Beheshti – diretor do Centro de Medicina Espacial da Universidade de Pittsburgh – e Robert Schwartz – do centro médico Weill Cornell – sobre os efeitos da radiação lunar e de Marte no organismo, os cientistas descobriram que o fígado, normalmente considerado mais resistente à radiação do que alguns outros órgãos, registou uma perda profunda de células hepáticas. A dose de Marte foi significativamente pior do que a dose da Lua, com as células que sobreviveram a mostrarem-se capazes de desempenhar funções básicas, como produzir proteínas e metabolizar resíduos, resultando num maior risco de prejudicar o sistema imunitário, acelerar o envelhecimento e causar cancro.
Outro resultado mostrou como as mitocôndrias que foram fortificadas com suplementos tinham muito menos probabilidades de perder a sua integridade e morrer. Beheshti e Schwartz sugeriram que os suplementos poderiam um dia ajudar os astronautas a evitar os piores efeitos da radiação. “Isto abre uma forma totalmente diferente de pensar sobre como se pode tratar qualquer número de doenças – cancro, envelhecimento, doenças infeciosas”, disse Schwartz.