O que fazer com a investigação a António Costa? Esta é a dúvida que está instalada no Departamento Central de Investigação e Ação Penal, após o caso ter descido do Supremo Tribunal de Justiça. De acordo com fontes judiciais, os autos estarão ainda na secretária do diretor do departamento, Francisco Narciso, e da coordenadora, Isabel Nascimento, a aguardar uma decisão sobre o seu destino: ou correm isoladamente ou são incorporados na “Operação Influencer”, que diz respeito ao centro de dados, em Sines, e que, esta quarta-feira, levou o Tribunal da Relação de Lisboa a arrasar as suspeitas do Ministério Público contra Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e outros arguidos.
No interior do Ministério Público, o clima não é o melhor. O procurador João Paulo Centeno – titular original da investigação – tem dado sinais de que pretende sair do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), o que poderá acontecer já em setembro, uma vez que este magistrado, com a categoria de Procurador da República, candidatou-se ao concurso de promoção a Procurador-geral Adjunto (PGA), o que lhe abrirá as portas dos tribunais da relação. Ao mesmo tempo, segundo informações recolhidas pela VISÃO, a parte da investigação relativa à exploração do lítio, em Boticas e Montalegre, que lhe estava atribuída, passou para as mãos de uma procuradora colocada na extensão do Porto do DCIAP.
Entretanto, outro dos procuradores envolvidos na investigação, Hugo Neto, foi obrigado a recorrer internamente da classificação de “Bom com Distinção”, que lhe foi atribuída no âmbito de uma inspeção ao seu serviço. No relatório de inspeção, a que a VISÃO teve acesso, a inspetor do Ministério Público até sublinhou estar “perante um magistrado com elevado brio profissional e sentido de responsabilidade e de justiça” que se “dedicou afincadamente à tramitação de alguns processos que lhe estavam atribuídos”. Contudo, continuou a avaliadora, “não podemos esquecer que essa dedicação não se verificou noutros processos (…), originando a paralisação de algumas dessas investigações por vários anos”.
Na resposta, Hugo Neto alegou com a complexidade inerente ao processo EDP/CMEC – que resultou na acusação contra o ex-ministro Manuel Pinho, o primeiro a ser acusado por crimes deste tipo no exercício de funções – e à posterior investigação da parte relativa à EDP, a qual deverá ter, brevemente, também um despacho de acusação. Em março, o Conselho Superior do Ministério Público atribuiu-lhe a classificação de “Muito Bom”.
Curiosamente, neste ponto, enquanto o anterior diretor do DCIAP, Albano Pinto, prestou um depoimento em tudo abonatório da qualidade de Hugo Neto – “um dos mais aptos ao exercício das funções que exerce” – o atual responsável do departamento, Francisco Narciso, optou por uma abordagem mais comedida: “É um magistrado muito dedicado, sempre disponível, intervertido, com elevadas capacidades técnica e de investigação, a quem, pelas suas qualidades, foram distribuídos processos especialmente complexos, alguns dos mais difíceis do departamento. Ocasionalmente, observei atrasos com significado, porventura fruto do trabalho que lhe foi distribuído”.
A “talho de foice”, Albano Pinto fez ainda questão de referir que a investigação do processo EDP foi conduzida “sem o apoio da Polícia Judiciária”, “em clara demonstração que há tipos de investigação que esta ainda não é capaz de levar a cabo”.
O acórdão demolidor e um juiz “velho conhecido” do PS
A decisão dos juízes desembargadores acabou por, indiretamente, beneficiar António Costa, apesar de o ex-primeiro ministro não ter sido ouvido no processo e, por isso, não dispor de um estatuto processual que lhe permita reagir ou contestar as decisões. Ao que a VISÃO apurou, o seu advogado, João Cluny, tem enviado vários requerimentos, mas apenas obteve como resposta o número do processo e a informação de que o mesmo tinha descido do STJ para o DCIAP. É que, ao mesmo tempo que afastou as suspeitas de tráfico de influências, os juízes desembargadores também rejeitaram a aplicação do crime de prevaricação ao processo legislativo, o que é, precisamente, o que está em causa no caso de António Costa.
Enquanto o ex-primeiro ministro não sabe o que o futuro judicial lhe reserva – apesar da convicção manifestada por Marcelo Rebelo de Sousa de que, até ao Outono, tudo poderia ficar resolvido e o ex-primeiro ministro até poderia fazer as malas para um cargo europeu -, esta quarta-feira, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, em 366 páginas, reduzir a cinzas a investigação do Ministério Público.
Os juízes desembargadores Cristina Almeida Sousa (relatora), Rui Teixeira e Hermengarda do Valle-Frias fizeram questão de assinalar que o documento redigido pelo Ministério Público que serviu de base para a apresentação dos arguidos a um juiz de instrução, em novembro de 2023, estava assente “em meras conjeturas, conclusões, especulações a partir de conversas telefónicas que a única realidade que demonstram é a de que houve conversas entre aqueles interlocutores e com aqueles conteúdos, sem que delas se possa retirar qualquer ilacção ou dedução lógica sobre se, efetivamente, ainda que por prova indireta com recurso a presunções judiciais assentes em regras de experiência, houve intromissão abusiva nos processos de decisão pública, que algum dos membros do governo, ou do município de Sines tenha agido a troco de qualquer vantagem ou em violação dos deveres do cargo”.
Ainda que tenham sublinhado a “inaptidão” do Ministério Público, “por falta de objetividade” em circunscrever os comportamentos dos empresários do data center de Sines e decisores políticos a crimes concretos, os juízes deixaram uma mensagem de censura social a todos os intervenientes no caso: “Fora de dúvida que todo este fluxo de telefonemas e o recurso a almoços e jantares em que políticos e promotores de projetos de investimento se juntam à mesa da refeição para conversar e acertar estratégias de solução de problemas e de condução de procedimentos administrativos de licenciamento pertinentes aos interesses de uns e à esfera de atribuições e competências decisórias de outros, deveria ter sido evitado, porque não é correto e porque gera uma percepção de opacidade, promiscuidade e ilegalidade de procedimentos que em nada abona para o rigor e a probidade que se espera e exige dos decisores públicos, nem para a transparência da actividade política ou da administração pública, nem, em geral, para a credibilidade das instituições”.
A Relação de Lisboa disse ainda não ter encontrado indícios “nem fortes, nem fracos, da prática de crime” de tráfico de influência na Operação Influencer, considerando que as interpretações do Ministério Público das escutas “não têm qualquer aptidão de princípio de prova”. “(…) As interpretações que o Ministério Público (MP) faz das sucessivas conversas telefónicas que andou a escutar ao longo de anos, assentam em meras proclamações, não concretizadas em circunstâncias objetivas de tempo, modo ou lugar”.
A decisão, como seria de esperar, foi comentada, analisada e louvada por muitos socialistas, sendo que um dos juízes que votou favoravelmente o acórdão, Rui Teixeira, é o mesmo que, em 2003, ordenou a prisão preventiva do então deputado Paulo Pedroso, no |âmbito do processo da Casa Pia. Uns anos mais tarde, esta decisão foi considerada “ilegal” e o Estado português foi condenado a pagar 68 mil euros de indemnização ao antigo ministro.