Vivemos vidas mais longas e mais saudáveis do que nunca. A soma do conhecimento humano e o entretenimento sem fim estão apenas a alguns cliques de distância. Então, por que não nos sentimos realizados?
No livro “Por que nos sentimos mal quando tudo corre bem?”, o autor, Anders Hansen, explica porque é que os seres humanos, enquanto espécie, não estão preparados para estarem sempre felizes.
POR QUE NOS SENTIMOS MAL QUANDO TUDO CORRE BEM?
A armadilha da felicidade
Até agora já dedicámos um livro quase todo ao motivo por que o cérebro não se desenvolveu para sentir felicidade, mas sim para estar sempre pronto para o pior – ansiedade – e, por vezes, para se retrair enquanto mecanismo de autodefesa – depressão. Chegou agora a altura de darmos a volta ao guião e tentaremos descobrir o que nos faz felizes. Apesar do crescente interesse académico pela questão (este campo florescente de pesquisa é conhecido como psiquiatria positiva), e do facto de “felicidade” ser uma das poucas palavras com mais resultados numa pesquisa do que «ansiedade» – 902 milhões –, é difícil determinar o que realmente significa.
Muita gente equipara a felicidade à sensação de positividade. Veem a felicidade como um estado constante de prazer e de satisfação, ao passo que, na pesquisa, a felicidade tende a ser definida por quão satisfeitos estamos com o rumo levado pela nossa vida. Desta forma, a felicidade pode ser vista mais com um objetivo a longo prazo do que com a constante sensação de se estar maravilhoso. Se concorda com esta definição e quer dar o seu melhor para ser feliz, julgo que o melhor que terá a fazer será ignorar a felicidade. Sim, esqueça-a! Quanto menos nos preocuparmos com ela, mais probabilidade teremos de a encontrar. Bem vê, o cérebro está constantemente a tentar prever o que se avizinha, após o que mapeia o que realmente acontece e compara-o com as previsões. Por exemplo, imaginemos que entra na sua casa de banho. Antes de o fazer, o cérebro já está a aceder a memória sobre o espaço, estando ativado de modo a refletir as impressões sensoriais que espera encontrar. Quando entramos na casa de banho, aquilo que vemos, ouvimos e sentimos é mapeado e comparado com as nossas previsões. Se as previsões do cérebro baterem certo com as impressões, não reagimos, mas se algo se desviar das previsões, estacamos.
A nossa vida é composta por uma sequência interminável de comparações destas, sobre temas importantes ou triviais, com o cérebro a comparar o que acontece com as previsões que fez. Quando, na primavera de 2021, se perguntou a idosos britânicos sobre a sua saúde física, a percentagem de pessoas que se consideravam de boa saúde aumentara em relação ao ano transato. Todavia, não temos grandes indícios que sugiram que a saúde dessas pessoas tivesse realmente melhorado durante o ano da pandemia de 2020. Pelo contrário – uma vez que mais de cem mil pessoas morreram, no Reino Unido, devido à Covid-19, e o sistema de saúde estava de tal modo saturado que tudo, salvo os cuidados de saúde mais prementes, funcionava abaixo do normal, é bem provável que a saúde desses idosos tenha piorado. Nesse caso, porque se sentiriam mais saudáveis? Uma possível explicação é que, face aos lembretes diários sobre doença e sofrimento, a bitola para o que consideravam boa saúde baixara. Com relatos consecutivos sobre unidades de cuidados intensivos e morgues sobrelotados, deixaram de considerar uma dor nas costas, um joelho lesionado ou enxaquecas constantes como sendo um grande problema. As previsões do cérebro – contra as quais mapeavam a experiência do quotidiano – haviam mudado, e, com elas, a opinião que tinham sobre a saúde.
Nesse aspeto, a neurobiologia programou-nos para comparar tudo o que vivemos com as nossas previsões e expetativas, ao invés de olhar de forma objetiva para o que acontece. Isto pode parecer óbvio, mas, não obstante, muitas vezes é esquecido. Quando estudei Economia, os nossos professores costumavam abrir as sessões afirmando: “O homem é uma criatura racional que prefere sempre mais a menos”. Enquanto médico e psiquiatra, cheguei à conclusão de que isso está errado. Não preferimos mais a menos. Preferimos mais comparado com os nossos vizinhos. A perceção que temos de quão bem está a nossa vida baseia-se no estado da dos outros. O seu Audi é fantástico até que o vizinho parece com um Tesla novinho em folha.
Um estado irrealista
por termos evoluído para mapear todas as nossas experiências e compará-las com as expetativas que não devemos procurar a felicidade. Tal como já vimos, os sentimentos de bem-estar têm de ser transitórios, caso contrário não cumpririam o seu principal objetivo, que é motivar-nos. O cérebro está constantemente a atualizar o nosso estado emocional com base na informação que recebe do corpo e do que nos rodeia. Para o cérebro, imobilizar-se num estado emocional positivo para nos sintamos sempre excelentes é tão irrealista como pensar que a banana na bancada da cozinha nos vai sustentar para o resto da vida. Não fomos feitos assim, mas somos levados a pensar que sim.
Em 2015, a Coca-Cola lançou uma enorme campanha de marketing. O gigante das bebidas já não nos encorajava a “partilhar uma Coca-Cola”, mas sim a “escolher a felicidade”. A mensagem que isso inculcou em milhares de milhões de pessoas foi que a felicidade é algo que escolhemos e não só podemos ser felizes como o devemos ser. A Coca-Cola não é, de todo, a única marca que já tentou associar o seu produto a um estado emocional irrealista. Eis mais alguns exemplos: “Viva feliz para sempre” (seguros domésticos), “A felicidade começa aqui” (mostarda), “Felicidade partilhada” (comida), “Sirva-se da felicidade” (um restaurante) e “Momentos de felicidade” (laticínios). Estes são apenas alguns slogans publicitários com o mesmo subtexto: a felicidade é uma sequência infindável de experiências alegres, e é algo que escolhemos. Se não nos sentirmos felizes, passa-se qualquer coisa de errado connosco.
Graças a esta inundação de slogans, a par dos 902 milhões de resultados no Google, somos recordados de que não só podemos, como devemos ser felizes – ou seja, sentirmo-nos excelentes todos os dias. E assim, o cérebro compara as nossas experiências subjetivas com um objetivo que é, na verdade, inalcançável: o bem-estar constante não é um estado natural para os seres humanos. Se nos deixarmos bombardear pelas fachadas de pessoas felizes, atraentes e, para todos os efeitos, harmoniosas, em pores do Sol tropicais, a expetativa que temos para as nossas emoções será irrealisticamente elevada. Quando o nosso mundo interior não consegue cumprir essas expetativas – algo que ninguém consegue – ficamos desapontados. A nossa imagem irrealista da felicidade, moldada pela publicidade, arrisca-se a deixar-nos infelizes. E não – não se trata de especulação.
Quando leram um artigo que alardeava as virtudes antes de assistirem a uma comédia, os participantes de um estudo revelaram-se menos felizes depois do filme do que os participantes que haviam lido um artigo onde não se fazia referência à felicidade. Uma possível explicação para isso é que o artigo possa ter elevado as expetativas dos participantes, e, com isso, nutrido a esperança de que o filme fosse hilariante. Não sendo tão engraçado como o esperado, foi uma desilusão. Quando não temos expetativas, a bitola fica mais baixa e a experiência corresponde às nossas expetativas, ou então supera-as, com resultados positivos para o modo como encaramos a experiência.
Curiosamente, veio a saber-se que quanto mais dinheiro um país gasta por ano em publicidade, menos satisfeitos estão os habitantes com a vida dois anos depois. Isto leva-nos a suspeitar que a publicidade desempenha o seu papel a elevar as nossas expetativas de vida emocional a um nível irrealisticamente elevado, levando a desilusões e a insatisfação. Um slogan publicitário que deixaria as nossas expetativas num nível mais realista – e que talvez pudesse ter um impacto positivo no nosso bem-estar – seria: “Não faz mal às vezes sentir-se mal”. Mas isso talvez não vendesse muitos refrigerantes, frascos de mostarda ou seguros de recheio de casa.
Ao contrário da maioria das coisas que queremos, em que as hipóteses de êxito aumentam com o esforço despendido, no caso da felicidade acontece o oposto. Quanto mais perseguimos a felicidade propriamente dita, mais nos arriscamos a que ela se nos escape por entre os dedos. O melhor conselho que posso dar a quem quer ser feliz é fazer orelhas moucas a todas as mensagens publicitárias ocas. Feche todos os artigos e livros e ligue o detetor de tretas para todas as palestras no YouTube que refiram o termo.
Mas, além de ignorarmos a felicidade, haverá alguma coisa que se possa fazer para sermos felizes? Aqui hesito, em parte porque aquilo que resulta comigo poderá não resultar com mais ninguém, e em parte porque qualquer tentativa de se adiantar conselhos é um campo minado cheio de clichés fofinhos e impossíveis de confirmar. Mas se for obrigado a dar a minha opinião, acredito que um dos mais perigosos equívocos da sociedade moderna é julgar que a felicidade é composta por um fluxo sem fim de experiências alegres.
É verdade que não fazemos ideia de como os nossos antepassados viam a felicidade (a palavra “feliz” remonta ao século XIV e originalmente significava “sortudo”), mas será extremamente improvável que os caçadores-recoletores que andavam pela savana africana acreditassem que o sentido da vida estava num fluxo contínuo de experiências alegres. Durante quase toda a história humana, o nosso atual conceito de felicidade seria tido como tão absurdo que nem seria elevado à categoria de fantasia. A nossa obsessão com a felicidade – e o erro de que a felicidade possa ser o mesmo que bem-estar constante – tem poucas gerações, mas como nunca conhecemos mais nada, não vemos o estranho
e irrealista que ela é.
Para mim, a felicidade não tem que ver nem com a busca por um constante mar de rosas, nem com a rejeição de tudo o que se prenda com o nosso desconforto. Ao mesmo tempo, sou materialista e sinto-me suficientemente confortável para saber que estaria a mentir se dissesse que a conveniência e os fatores materiais não desempenham um papel relevante. Eles são indubitavelmente importantes – tanto para mim, como para quase toda a gente. A mais construtiva definição de felicidade que já ouvi é que ela é a combinação de experiências positivas e de um maior conhecimento de nós próprios; o conhecimento daquilo que temos de bom e de como essas qualidades podem ser usadas em nosso proveito e dos outros, e, ao fazê-lo, sermos parte de algo maior do que nós. Para a maioria das pessoas faz-se luz quando dão consigo não no seu objetivo último, mas numa fase em que trabalham para algo maior do que elas. É então que elas descobrem aquilo que, à falta de melhor palavra, pode ser chamado de “felicidade”. Resumindo, a felicidade não deve ser vista como objetivo, mas sim como fazendo parte de um contexto mais vasto.
A felicidade chega quando compreendemos o que para nós é importante na vida e vamos trabalhando a partir daí; quando nos tornamos parte de algo que consideramos significativo, tanto para nós como para os outros. Não surpreende, propriamente, que a maioria de nós funcione assim. Afinal de contas, a nossa sobrevivência sempre dependeu da nossa capacidade de trabalhar em conjunto. Quem sobreviveu aos desafios da natureza – e acabou por se tornar nosso antepassado – fê-lo em grupo. Não nos tornámos a espécie dominante na Terra por sermos os mais fortes, os mais rápidos ou os mais inteligentes, mas sim porque fomos os melhores a trabalhar em equipa. É por isso que sofremos tanto com a solidão.
Quando lhe perguntaram como foi capaz de invocar a força espiritual para sobreviver a quatro campos de concentração, entre eles Auschwitz, o psiquiatra e neurologista austríaco Viktor Frankl citou o filósofo Friedrich Nietzsche: “Quem tem um porquê pelo qual viver suporta quase qualquer como”. As coisas importantes o suficiente para criar tal porquê deverão ser tão numerosas quanto os habitantes deste mundo, mas uma coisa é certa: a alegria constante não é uma delas. Portanto, não persiga a felicidade. A felicidade é o que aparece quando deixamos de pensar nela e nos concentramos naquilo que nos parece importante.