Andei na escola só até à terceira classe. Gostava de ir às aulas; a professora Teresa era muito amiga dos alunos, mas não tive oportunidade de continuar. O meu pai deixou a minha mãe com sete filhos em casa. Éramos quatro raparigas e três rapazes. Eu era a do meio e tinha de tomar conta dos mais novos. A vida não era fácil… a minha mãe saía cedo para trabalhar nas limpezas.
Eram mais as ocasiões em que ficava em casa do que aquelas em que ia à escola… até que deixei de ir. Os meus irmãos também deixaram as aulas mais ou menos na mesma altura, chegaram só até à terceira classe, como eu. Aprendi a fazer tudo muito cedo, arrumava a casa e tratava deles. Tínhamos um pátio nas traseiras, e era aí que passávamos o dia. Jogávamos à bola, ao bilas, à carica ou a saltar ao elástico e à corda – eram as brincadeiras que existiam na altura.
Passámos por necessidades, a comida na mesa não era muita. A minha mãe teve dificuldade em criar os filhos; uma sardinha dava para quatro, como se costuma dizer, mas ela fez tudo o que podia.
Com o tempo, deixei de saber o que aprendi. Esqueci-me das letras. Pensava que sabia, mas quando ia escrever não conseguia. Durante anos, fui analfabeta.
Quando a minha mãe me pedia para ir à mercearia comprar alguma coisa, dava-me quase sempre o dinheiro certo. Chegava lá e dizia ao senhor o que queria, não conseguia ler os rótulos. Aos poucos, a minha mãe foi-me ensinando a distinguir alguns números para poder apanhar o autocarro. Percebia os traços do algarismo da camioneta para o bairro onde morava, mas não sabia ler “Galinheiras”. Fui desenvolvendo técnicas próprias para me desembaraçar.
“Trabalhei sempre muito”
Estive uns dez anos sem ver o meu pai. Um dia, apareceu e perguntou aos filhos quem é que queria ir com ele. Alguns foram, mas eu e uma das minhas irmãs ficámos com a minha mãe. Sei que os meus irmãos continuam a não ter muitos estudos, mas não me dou com eles.
É muito triste não saber ler nem escrever. Identificava as notas pelas cores: a verde era a de 20 escudos; a castanha, a de 50 escudos; e a azul, a de 100 escudos. Não gostei nada quando veio o euro.
Quando era preciso preencher algum papel numa consulta médica, tinha de pedir sempre à funcionária para me ajudar. Não gostava nada disso, tinha vergonha de ser analfabeta.
Como não sabia assinar o nome, era a impressão digital que punha nas burocracias. Perguntava o nome das ruas quando era preciso e, nas compras, orientava-me pelas cores e pelo formato das embalagens. Também não sabia contar o troco, tinha de confiar no que as pessoas me davam
Como não sabia assinar o nome, era a impressão digital que punha nas burocracias. Perguntava o nome das ruas quando era preciso e, nas compras, orientava-me pelas cores e pelo formato das embalagens. Também não sabia contar o troco, tinha de confiar no que as pessoas me davam.
O meu marido sabia ler e escrever. Quando ele precisava de rabiscar alguma coisa, sentava-me a ver como fazia; ensinou-me umas coisinhas para me safar no dia a dia. Fiquei viúva muito cedo, aos 29 anos. Os meus dois filhos precisavam mais do que nunca da mãe. Trabalhei sempre muito para lhes dar conforto.
Durante mais de 20 anos, saía de casa às cinco da manhã para ir trabalhar nas limpezas de escritórios. Fazia vários turnos e só chegava a casa à meia-noite. Quase nem via os miúdos, a minha mãe é que cuidava deles. Se hoje têm o que têm, a mim o devem. Ele quis deixar a escola quando tinha 15 anos. “Ai é? Então, vais trabalhar.” E foi para um restaurante. Ela completou o nono ano.
“Agora, sou eu que ajudo os outros”
Sempre quis aprender de novo. Hoje em dia, só não sabe quem não quer, e eu queria. Fui aprendendo algumas coisinhas por mim, algumas letrinhas e números. Até que, há uns anos, me inscrevi nos cursos da Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos. Comecei por aprender o abecedário, depois a juntar as letras e a fazer contas. Os meus netos mais velhos ensinaram-me a mexer no computador e no smartphone.
Hoje, tenho um grande orgulho em saber escrever o meu nome. Sinto-me feliz por isso. As aulas online começam em novembro, e vou continuar a aprender. Agora, já consigo ler as legendas dos filmes, mas quero mais.
Saber ler e escrever dá-nos uma grande liberdade; é uma conquista minha, nunca desisti de tentar. Tornou-me uma pessoa como as outras. É importante ter amor-próprio. Já preencho formulários quando é preciso e faço sempre os trabalhos de casa.
E é engraçado porque, agora, sou eu que ajudo as outras pessoas. Há muita gente no meu bairro, na Ameixoeira, que não sabe ler nem escrever, e, como sou conhecida e têm confiança em mim, vêm ter comigo para os ajudar a preencher os papéis.
Saber as letras também me ajuda no meu trabalho atual. Deixei as limpezas e o bairro das Galinheiras há cerca de 15 anos e comecei a trabalhar numa associação para pessoas com deficiência mental. Faço jogos com eles, pintamos, escrevemos e brincamos. Também os ajudo a comer ou mudo fraldas e dou banho quando é preciso. Gosto muito daquilo que faço, tenho muito carinho pelos meninos.
As aulas da formação de adultos começam às 18 horas, mas, como moro mesmo em frente ao trabalho, é um instante enquanto atravesso a rua e me ponho ao computador. A professora faz ditados, manda-nos escrever palavras começadas por uma letra do abecedário, e fazemos contas. No fim da aula, passo o caderno todo a limpo. Não me levanto da cadeira até estar tudo feito e bonito.
Quero que os meus cinco netos estudem até o mais longe possível. Ter vergonha de nós próprios é triste e confrangedor. Se não soubermos ler e escrever, não somos ninguém.
Depoimento recolhido por Sara Rodrigues