Dizem que o amor é cego. Sobretudo no feminino, ainda persiste o mito de encontrar “o(a) tal”. Por trás deste pressuposto, um ideal romântico, idealizado, capaz de suprir necessidades próprias. A realidade encarrega-se de mostrar, em devido tempo, que não é bem assim, que o conceito de alma gémea tem pés de barro e, pior ainda, deixa marcas, caso se persista nessa fantasia.
Algumas pessoas são mais propensas a envolver-se em relacionamentos amorosos destrutivos, mascarados de paixão, mas quem nunca se envolveu com a pessoa errada que atire a primeira pedra. Qualquer pessoa pode dar por si a sentir que cometeu um “erro de casting” e, apesar disso, recair, voltar ao ‘local do crime’, perdoar o bem que sabe ao mal que faz. E pode ser muito, caso se arraste no tempo.
Diana Cruz é psicóloga clínica, terapeuta familiar e autora do livro Não é Amor, é uma Relação Tóxica – Plano detox para acabar com a toxicidade emocional (Manuscrito Ed.) A VISÃO foi ao seu encontro para perceber o que é isso das relações tóxicas. Na alimentação, são os patógenos que, em vez de nutrirem, causam problemas digestivos e mal-estar físico. No amor, tantas vezes associado a iguarias únicas que dão sabor e cor à vida, essa toxicidade assume a forma de comportamentos e atitudes: aquele amor que parece mel tem uma dose de fel que, aos poucos, ganha terreno e mina o equilíbrio emocional.
Dirigido a mulheres, o livro tem exercícios práticos, casos clínicos e algumas pistas para mudar o curso de uma história que tem todos os ingredientes para não correr bem, a la longue, mas como fez saber a autora, também pode acontecer no masculino. E lança o repto: “Se der por si a questionar se está numa relação tóxica, provavelmente, estará!”
Porque decidiu escrever este livro, de mulher para mulher?
Dei-me conta que, na clínica e na vida pessoal, se falava de relações tóxicas de uma forma indiscriminada, retirando, até, um certo peso à palavra. Trata-se de relacionamentos que geram muito sofrimento e desestruturam a vida da pessoa, nos planos afetivo, social e profissional, e levam à destruição da identidade.
Pode traçar um perfil de quem se sente numa relação que causa dano, ou se revela patológica?
Em consulta, chegaram-me relatos de mulheres, com idades entre os 20 e os 40 anos, em média, que não estavam necessariamente num casamento e, geralmente, sem filhos, e que sentiam culpa e vergonha por permanecerem num relacionamento que era tudo menos amoroso e terem tentado sair dele, mas sem sucesso.
O que as leva a voltar, ou a recair, após perceberem que o parceiro não é o melhor para elas?
Embora muitas considerem que são fracas, ou limitadas, isso não passa de um mito. Na verdade, são mulheres altamente capazes, autónomas, com uma vida social e laboral organizada. Habitualmente muito empáticas e orientadas para a relação e tendem a justificar comportamentos menos aceitáveis do parceiro. “Esta pessoa teve um trauma e eu consigo ajudá-la com o meu amor consistente”, por exemplo. Eles elogiam-nas e, ao mesmo tempo, contam-lhes como sofreram com parceiras anteriores, dando a entender aquilo que esperam delas. Escolhem-nas como suas presas, por serem inteligentes e competentes.
É possível traçar um perfil destes homens? Narcísicos, por exemplo?
Podem não ter um diagnóstico clínico, mas são geralmente egocêntricos, individualistas e sedutores. Esperam receber, serem acolhidos, mas sem a expetativa de dar algo ao outro, que vêem como um instrumento através do qual podem satisfazer as suas vontades. É comum terem uma dose de agressividade, uma espécie de terrorismo, que se manifesta por críticas e humilhações constantes.
Pode dar uma ideia de como se processa esta dinâmica no casal?
Afirmações do tipo “a tua colega anda a passar-te a perna e só tu é que não vês; também tem umas boas pernas, mas é, sobretudo, mais esperta”. Outra versão da desvalorização do mérito, na esfera profissional: “O teu trabalho não tem nada para valorizar; o que o teu chefe quer é ir para a cama contigo e, se não for eu a dizer-te, não chegas lá”. Já num encontro social, a pessoa tóxica dá aos outros, pelo menos na fase inicial, uma impressão favorável de si, deixando as amigas da mulher com quem se envolve rendidas: “O teu namorado é o máximo, é tão querido.” Ela convence-se de que ele é um bom partido. Mais tarde, descobre que a história é outra: o homem quer mostrar-lhe como todas as outras o adoram, sugerindo a outros que a mulher já tem dono.
Situações como estas são comuns, na sua prática clínica?
Há dias, numa consulta, uma mulher contou-me que o namorado enviou um ramo de flores para o seu novo local de trabalho, logo no primeiro dia, como tinha feito antes, numa situação similar. Dias depois, veio uma caixa de bolos com a mensagem “é para partilhares com colegas de trabalho”. Aquilo surtiu efeito – “mal te conheço mas já gosto do teu namorado”, ouviu dizer – mas aquele gesto nada tinha a ver com ajudá-la a adaptar-se!
Que leitura fez desse comportamento?
Se o homem quisesse apoiá-la na mudança de local de trabalho, passava na pastelaria, comprava os bolos, levava a caixa para casa e dizia-lhe: “É para ti; se quiseres, leva-os para comer, a meio da manhã, com os teus colegas, para quebrar o gelo.”
Quando é que se apercebem desse lado mais sombrio do relacionamento?
Leva tempo. A maioria já teve histórias em que é suposto que o amor custe, que exija sacrifício, mas algumas nem sequer tiveram esses antecedentes, mas foram seduzidas por aquele ‘love bombing’ e, a pouco e pouco, sofrem uma erosão da identidade e acabam por ficar inseguras. Com o tempo, a mulher deixa de ter os seus comportamentos habituais, deixa de lidar com as pessoas com quem lidava e percebe que está numa relação tóxica, que a isola dos outros. A certa altura, vê-se confrontada com o seu papel nessa história.
Este padrão relacional pode contribuir para a violência no namoro?
A violência é legitimada a partir de mitos como “somos um para o outro” ou “somos almas gémeas”. Essa espécie de âncora, ainda muito valorizada na nossa sociedade, cria espaço para alguma agressividade e violência e leva, até, a mulher a por-se em causa: “Se isto era tão bom no início, devo estar a fazer alguma coisa errada, pois se somos almas gémeas!” Nas consultas costumo dizer: se der por si a questionar se está numa relação tóxica, provavelmente, estará!
Porquê?
Por causa da ideia de que o amor é um sacrifício, de que a pessoa deve abdicar dos seus limites pessoais e da sua identidade para passar a fazer parte de uma identidade conjunta.
O que é que a mulher ‘vítima’ pode fazer para modificar essas crenças limitadoras?
Primeiro é preciso reconhecer que, na sua situação, não há uma identidade conjunta: há apenas lugar para um, que domina a relação sem respeitar limites. Depois, terá de dar um novo significado à sua identidade.
Este padrão patológico é sinónimo de co-dependência, também designado de “amar demais”?
Não podemos encarar estas mulheres como co-dependentes, termo que costuma ser associado à imagem da mulher que se comporta como mãe de um toxicodependente: vê-o como drogado, mas dá-lhe dinheiro para consumir. O que estas mulheres sofreram tem nome: terrorismo. Entram numa relação com a ideia do amor romântico sem saberem o que lhes vai acontecer até descobrirem que se trata de algo que foi construído com a intenção de gerar uma paixão instantânea, que é a raiz da relação tóxica. Se ficar progressivamente isolada de amigos e familiares, achar que não é capaz de viver sem aquela pessoa e começar a duvidar de si, é natural que isso gere dependência. Um pouco como a Síndrome de Estocolmo, que liga o refém ao raptor.
Admitindo que é possível, e desejável, sair de um relacionamento tóxico, por onde começar?
A pessoa tem de voltar ao seu centro. Tal implica aprender que o amor não é só dar, também significa receber, por de lado a ideia do amor romântico e ter a noção das suas crenças, valores e limites, sem se centrar exclusivamente no relacionamento. Quando entra numa nova relação, deve partir do princípio de que a outra pessoa é diferente, aceitar isso e por de lado a ideia de que essa pessoa é igual a si ou a sua alma gémea.
O homem é sempre o ‘lobo mau’, ou o mau da fita?
Também há homens que são vítimas, embora menos. A coisa acontece mais ou menos da mesma maneira, com a diferença de que as mulheres tendem a ser um pouco mais requintadas.
Como nota final, o que pode acrescentar ao que já disse?
Embora existam pais, mães, chefes e amigos tóxicos, este livro, de uma mulher para outras mulheres, aborda relações ditas de amor, mas que não o são e como mudar isso. O luto é diferente do de uma relação amorosa saudável, porque tende a deixar marcas de trauma. Isso pode dificultar a tarefa de voltar a confiar, mas esse trabalho é possível, através de um melhor conhecimento de si.