Pouco antes da realização da Convenção Quadro da Organização Mundial de Saúde para o Controlo do Tabaco (CQCT), agendada para novembro no Panamá, um executivo da Philip Morris International (PMI), o maior fabricante de tabaco do mundo, enviou um e-mail à sua equipa para travar aquilo que descreve como um “ataque proibicionista” aos cigarros eletrónicos e similares, subjacente à agenda do evento. Segundo o jornal britânico The Guardian, numa mensagem enviada a 22 de setembro pelo vice-presidente sénior de assuntos externos da PMI, os funcionários foram instruídos a encontrar “qualquer ligação, qualquer pista, seja política ou técnica” antes desta reunião de delegados de 182 países.
A PMI pretende, com esta grande campanha de lobby, impedir orientações repressivas em relação ao tabaco sem fumo. Na convenção do Panamá está prevista a possível regulamentação, incluindo a tributação, deste produto. “A agenda e os documentos da reunião (…) reconfirmaram todas as preocupações que tínhamos de que esta conferência pudesse continuar a ser a maior oportunidade perdida de sempre na história do controlo do tabaco… A agenda da OMS é nada menos que um ataque sistemático, metódico e proibicionista aos produtos sem fumo”, escreveu Grégoire Verdeaux. Para o executivo da PMI, “a OMS comprometeu irreversivelmente a oportunidade histórica para a saúde pública apresentada pelo reconhecimento de que os produtos sem fumo, devidamente regulamentados, podem acelerar o declínio das taxas de tabagismo mais rapidamente do que o controlo do tabaco combinado”.
Segundo revela o The Guardian, Verdeaux reconhece na mensagem que, durante os últimos 18 meses a empresa tem trabalhado para “alcançar o apoio certo” na convenção, mas acrescentou: “Nesta fase não estamos onde gostaríamos de estar – em termos de inteligência, posições e delegações”. Mas acreditava ainda ser possível “mover a agulha”, insistindo: “Ainda há tempo”. E conclui: “Aconteça o que acontecer, estamos do lado certo da história.”
Após ser tornado público o e-mail, Verdeaux afirmou em comunicado: “O que digo publicamente e o que digo aos nossos funcionários é exatamente o mesmo: tenho orgulho de defender aos governos e aos media que a inovação reduz as taxas de tabagismo mais rapidamente e por isso razão deve ser apoiada e regulamentada. A conferência da CQCT da OMS é realizada à porta fechada, mas deve ser um fórum aberto onde cientistas, consumidores e empresas também sejam ouvidos.”
Tabaco sem fumo: tendência crescente
Nos últimos anos, como forma de contrair as políticas governamentais mais restritivas em relação aos cigarros, a empresa fabricante dos Marlboro tem apostado cada vez mais em produtos sem fumo, como tabaco aquecido e cigarros eletrónicos, tendo obtido receitas de 10,19 mil milhões de dólares (9,68 mil milhões de euros) – um terço da receita global.
Contudo, em setembro deste ano, o presidente da empresa, Jacek Olczak, reconheceu ter sido necessária rever a meta de obter a maior parte das receitas da venda de produtos sem combustão até 2025, embora continue a acreditar que, até 2030, conseguirão reduzir para menos de um terço a venda de tabaco tradicional. As taxas de crescimento previstas, para os cigarros eletrónicos e similares, oscilam entre 20% e 35%.
A posição da OMS
Recorde-se que a CQCT, aprovada em maio de 2003, foi o primeiro tratado internacional negociado sob as orientações da OMS, representando um marco na história da saúde pública a nível mundial. Desde então, tornou-se um dos tratados mais rápidos e amplamente adotados na história das Nações Unidas, ratificado por 182 países – 60 dos quais cumpriram a meta de uma redução de 30% no consumo do tabaco.
Numa comunicação pública, o secretariado da Convenção notou com preocupação que “algumas Partes foram abordadas por representantes da indústria do tabaco e de outros representantes da indústria do tabaco para oferecer viagens e apoio técnico, incluindo consultores, às suas delegações oficiais”. Aproveitou ainda para relembrar que há um “conflito fundamental e irreconciliável entre os interesses da indústria do tabaco e os interesses da política de saúde pública”.
Anualmente, o tabaco continua a matar mais de oito milhões de pessoas. A OMS estima que nove em cada 10 pessoas se tornam fumadores antes dos 18 anos e acusa a indústria do tabaco de “atacar implacavelmente os jovens”, através da venda de cigarros descartáveis e cigarros eletrónicos, que normalmente não têm advertências de saúde. Num relatório sobre o combate ao tabagismo, divulgado em 2021, denuncia que os fabricantes procuram aliciar crianças e adolescentes com milhares de sabores (foram listados 16 mil), e com declarações tranquilizadoras.
Segundo a agência, estes produtos não são inofensivos nem representam um risco menor para a saúde humana. Algumas toxinas estão presentes em níveis mais altos nos aerossóis produzidos por estes dispositivos do que no fumo de um cigarro convencional. Além disso, existem algumas toxinas que não estão presentes nos cigarros. De acordo com a OMS, “as implicações para a saúde da exposição a estas toxinas ainda são desconhecidas.”
Algumas investigações associam o uso de cigarros eletrónicos a tentativas bem-sucedidas de deixar de fumar, enquanto outras apontam no sentido contrário. A OMS diz que não há provas suficientes de que ajudem os fumadores a deixar de fumar.
As preocupações quanto ao uso do tabaco sem fumo por jovens são cada vez maiores. Vários países tomaram ou ponderam tomar medidas restritivas quanto ao consumo de vaporizadores descartáveis – nomeadamente, a Austrália, a França, a Nova Zelândia e o Reino Unido. Inventados em 2019, os vapes de utilização única surgem normalmente em atraentes embalagens e ganharam popularidade entre os adolescentes de todo o mundo. A STOP, organização de vigilância da indústria tabaqueira, alertou para a combinação de sabores frutados, embalagens divertidas e promoção por influenciadores sociais, a visar uma nova geração de utilizadores. Tal como acontece com os cigarros eletrónicos, a maioria destes vaporizadores contém nicotina. Ainda não existem estudos científicos conclusivos sobre os efeitos para a saúde, a longo prazo, embora já tenha sido demonstrada que a utilização prolongada pode prejudicar significativamente a função dos vasos sanguíneos do corpo, aumentando o risco de doenças cardiovasculares. “O vaping juvenil está a tornar-se rapidamente uma epidemia entre as crianças e receio que, se não forem tomadas medidas, vamos caminhar como sonâmbulos para uma crise”, defendeu Mike McKean, vice-presidente do britânico Royal College of Paediatrics and Child Health.