Depois de muitos avanços e recuos, ainda não foi desta que arrancou o julgamento que coloca Mamadou Ba no banco dos réus, na sequência de uma queixa do neonazi Mário Machado. Os protagonistas marcaram presença no Campus de Justiça, em Lisboa, ao início desta tarde, mas a sessão seria adiada na sequência da greve dos funcionários judiciais – o início do julgamento deve agora acontecer no dia 10 de maio.
À porta do tribunal, cerca de quatro dezenas de manifestantes marcaram presença para manifestar apoio a Mamadou Ba, nomes ligados a movimentos (como o SOS Racismo ou a plataforma Kilombo) ou apenas a título particular. À chegada ao local, Mamadou Ba – cidadão luso-senegalês, que, depois de 25 anos a viver em Portugal, se mudou, em janeiro de 2022, para Vancouver, no Canadá, onde trabalha na Universidade da Colúmbia Britânica – cumprimentou os presentes, um por um, mas remeteu declarações para a sua advogado, Isabel Duarte.
Aos jornalistas, Isabel Duarte admitiu que este “é um julgamento político”, acrescentando que este processo “vem contribuir para que se faça uma reflexão sobre um conjunto de questões que não se resumem ao caso” – um combate entre o racismo e o antirracismo. “O meu cliente é um combatente antirracista e todas as suas ideias têm de ser encaradas à luz dessa sua luta pessoal, que ele vive na carne, e que tem vindo a combater ao longo dos anos, desde que chegou a Portugal em 1997”, afirma.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2023/04/230426_2048_LB__4644-1600x1066.jpg)
Deixando críticas ao despacho de instrução do juiz Carlos Alexandre – ditado em menos de 24 horas –, Isabel Duarte recordou que “a frase pela qual Mamadou Ba vai ser julgado tem todo o apoio dos vários tribunais que julgaram o caso Alcindo Monteiro”, adiantando que a expectativa é que o seu cliente seja absolvido de todas as acusações – “aqui, no recurso ou no Tribunal Europeus dos Direitos Humanos”, disse a advogada.
Despacho do juiz Carlos Alexandre deixa Machado “confiante”
Já Mário Machado declarou-se “confiante e desejoso que se faça justiça”. À porta do tribunal, o militante de extrema-direita recusou motivações raciais neste processo, admitindo, apenas, que “tem muito orgulho em ser branco”. “Não sou racista, mas, admito, tenho muito orgulho no meu país e em ser branco”, sublinhou.
Sobre o processo, voltou manifestar “estar muito satisfeito” com o despacho de instrução, assinado pelo juiz Carlos Alexandre, considerando que “não existe volta a dar: Mamadou Ba vai ser condenado”. “Ao fim de muitos anos a chamarem-me assassino, chegou a altura de se repor a verdade… Tem sido muito penoso para mim e para a minha família”, afirmou.
A mesma posição “confiante” tem o seu advogado, José Manuel Castro, que, aos jornalistas, voltou a destacar a forma como o juiz Carlos Alexandre “não teve dúvidas de mandar este caso para julgamento”. Questionado se o passado criminoso de Mário Machado pode pesar numa decisão, o causídico recordou que “este julgamento é um caso à parte” e que “quem está a ser julgado é Mamadou Ba, e não Mário Machado”.
Publicação no Facebook na origem do processo
Recorde-se que na origem do processo está um texto publicado, no Facebook, por Mamadou Ba, no dia 14 de junho de 2020, em que criticava os acontecimentos ocorridos quatro dias antes (no dia 10), quando um grupo de neonazis decidiu organizar uma ação nacionalista, no largo do Chiado, ao mesmo tempo que decorria uma homenagem para assinalar os 25 anos da morte de Alcindo Monteiro – cidadão português, de origem cabo-verdiana, assassinado no Chiado, em 1995, por militantes da extrema-direita –, a apenas 200 metros de distância. A ação nacionalista contou com a presença, entre outros, de João Martins, condenado a 17 anos pelo homicídio de Alcindo.
Naquela rede social, Mamadou Ba denunciou a provocação e lamentou o facto de João Martins ter passado, todos estes anos, “pelos pingos da chuva do escrutínio público”, longe dos olhares mediáticos, ao contrário de outro parceiro ideológico, Mário Machado, que o autor do texto descreveu como “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo”. De facto, Mário Machado fazia parte do grupo de extrema-direita que, no dia 10 de junho de 1995, se reuniu ao jantar e, nessa noite, decidiu espalhar o terror pelas ruas de Lisboa, agredindo e matando indivíduos de raça negra. O conhecido neonazi acabaria condenado, sim, mas “apenas” por oito crimes de ofensas corporais com dolo de perigo, pelos quais cumpriria quatro anos e três meses de prisão. O seu nome não seria relacionado com os factos que resultaram na morte de Alcindo.
O Ministério Público (MP) e o tribunal acabaram por considerar que a frase utilizada por Mamadou Ba revela um “forte indício” de o acusado “ter difamado” Mário Machado. “Se acaso o arguido [Mamadou Ba] tiver conhecimento de crimes praticados por Mário Machado, pode denunciá-los num lugar próprio, na polícia ou no MP, mas não pode substituir-se aos tribunais e invocar o direito de liberdade de expressão”, escreveu o juiz Carlos Alexandre, no despacho de pronúncia.