Se há coisa que nos diverte, é ver as gafes de linguagem que as figuras públicas cometem, sejam políticos, futebolistas, apresentadores de televisão ou atores, razão pela qual esses ‘apanhados’, durante as filmagens, surgem a par da ficha técnica. Por um lado, mostram que todos somos imperfeitos, por outro são a prova de que, por mais que queiramos, há fenómenos que ocorrem na comunicação que não conseguimos controlar por completo.
Os erros surgem em todas as frentes. A palavra ou o nome de alguém, que está na ponta da língua mas não sai. Dizer uma palavra parecida com aquela que se quer dizer, embora seja totalmente inapropriada ou fora de contexto, a meio de uma conversa. Pisar alguém e dizer “foi minha intenção”, sem referir o “não” à cabeça, fenómeno que é vulgarmente apelidado de “pecar por omissão”. E, ainda, trocar fonemas (vogais, consoantes) numa mensagem escrita ou num mail e dar-se conta de que não vai a tempo de emendar o erro. Não raras vezes, estes incidentes podem revelar-se problemáticos e, até, levar uma pessoa questionar-se sobre a sua sanidade mental e a sua credibilidade diante de amigos, colegas de trabalho e familiares.
Há dois anos, a pivô do jornal da Rede Globo, Yonara Werri, recebeu em direto uma mensagem de um fã, em que também fazia saber que o pai gostava muito do programa. Em resposta, a jornalista disse: “Então, um grande beijo para si, e também para o seu pau”, corrigindo o erro de imediato, entre risos. Gafes destas também acontecem nos telejornais portugueses. No Agora CNN, ficou célebre o oráculo que acompanhava a notícia do caso João Rendeiro: “Advogado não recebeu peido (em vez de pedido) de extradição.” Serão atos falhados? Lapsos freudianos (por ter sido o médico Sigmund Freud a estudá-los)? Estes enganos não intencionais podem ser inócuos, mas também se dá o caso de terem um impacto negativo na reputação dos visados, ao verem a sua reputação afetada ou serem alvo de piadas, pelo menos por algum tempo.
Além do inconsciente
No seminal Psicopatologia da Vida Quotidiana, divulgado em 1901, o pai da Psicanálise atribuiu os deslizes e as omissões comprometedoras à influência de pensamentos que surgem enquanto se fala, e que teriam origem num conflito interno ou em desejos inconscientes que escaparam ao controlo consciente e vieram à superfície, de forma involuntária. Porém, o autor do modelo do desenvolvimento psicossexual humano (fases oral, anal e fálica, entre o nascimento e até aos cinco anos), que era fumador, chegou a afirmar que “às vezes, um charuto é apenas um charuto”, referindo-se a eventuais excessos nas interpretações analíticas.
Mais de um século depois, ainda não é claro porque é que os lapsos acontecem e o que realmente significam, mas desde os anos 1980 que os investigadores se têm debruçado mais a fundo sobre o tema, criando desenhos experimentais em laboratório. Um estudo do especialista americano em comunicação Michael T. Motley e do neurobiólogo Bernard J. Baars mostrou que, diante da possibilidade de receberem um choque elétrico, os participantes eram mais propensos a ter lapsos verbais, da mesma forma que aqueles que estavam próximos de uma investigadora atraente, tendiam a confundir frases com palavras associadas a mulheres bonitas (nenhum destes fenómenos cognitivos aconteceu no grupo em que o ambiente era neutro).
Outro estudo, liderado pela equipa do psicólogo Daniel Wegner, pediu aos participantes para não pensarem num urso branco e bastou essa instrução para o pensamento ocorrer, em média, uma vez por minuto, tendo um efeito paradoxal. Ficou claro que, enquanto uma parte suprime o conteúdo a evitar, a outra fica vigilante para travá-lo se vier à mente e, a certa altura, o processo falha e o material “proibido” irrompe à superfície.
Em suma, Freud explica (veja-se o caso de alguém que tem um caso extraconjugal e se esforça para não trocar o nome do parceiro ao chamá-lo, até ao dia…). Porém, existem outras razões para se dizer o que não se quer. Muitos dos erros de léxico que fazem parte do quotidiano parecem estar, também, associados a distorções cognitivas, hábitos de linguagem e outros fatores que têm a ver com o estilo de vida de cada um.
Palavras mal ditas (e não malditas!)
“Desde que bem fundamentadas, não há razão para não aceitar diferentes leituras para um mesmo fenómeno”, avança Maria da Graça Pinto, Professora Emérita da Faculdade de Letras, da Universidade do Porto. Baseando-se nos estudos de psicolinguística, entende que os “erros” de linguagem ou lapsos de língua envolvem, “a mensagem, o nível funcional, que é linguístico mas ainda abstrato, e o nível posicional, mais próximo da frase”.
Os erros podem verificar-se em qualquer destes níveis. É o caso das “substituições semânticas, de que resultam erros à la Freud, as trocas de palavras e as trocas sonoras”. Porém, tais lapsos dependem da arquitetura da frase e da forma como ela se processa: “Quem fala não “erra” como quer e quando quer, fá-lo em consonância com o que o processo em causa lhe permite”, ou seja, “no plano da linguagem, há tanto de liberdade como de contenção”.
Debitamos milhares de palavras por dia, duas ou três por segundo e, numa sociedade saturada de estímulos, pautada pelo multitasking e com várias portas de entrada e saída digitais, o mais certo é meter os pés pelas mãos, ou seja, emitir mensagens com erros por terem palavras semelhantes, no som, na forma gramatical ou no significado, da mesma maneira que se enviam mensagens a destinatários indevidos por distração.
O cérebro humano não está programado para tanta aceleração, sendo de admitir que a velocidade prejudica o foco e favorece o erro. E isso acaba por ocorrer tanto no face a face como nas interações digitais: finalizar um mail à pressa e teclar uma letra por engano, por exemplo, pode ser embaraçoso, após descobrir, com vergonha ou embaraço, que em vez de ‘abraço’, seguiu a palavra ‘baraço’, engano que pede um mea culpa, ou quase: “Foi o corretor!”
Num artigo da Psychology Today divulgado no ano passado, o psicolinguista Gary Dell, professor emérito da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, observou que “os deslizes surgem pela ativação de várias partes dos circuitos cerebrais quando se quer aceder a uma palavra com um significado ou sonoridade semelhantes”. Basta falar depressa para que, acidentalmente, se tropece no próprio discurso, misturando ou ‘comendo’ sílabas e, no limite, saírem da boca vocábulos incompreensíveis.
Veja-se o caso de Donald Trump, quando escreveu, no Twitter, a palavra “Covfefe”, quando aquilo a que se referia era “coverage” (“cobertura” em português). Ou mesmo o nosso Primeiro Ministro e o seu léxico sui generis, que serviu de matéria prima para os humoristas, profissionais e amadores.
Quando o processamento falha
Há coisas que tocam a todos e nem sempre têm a ver com doenças associadas ao envelhecimento. As gerações que nasceram e cresceram no digital são, com frequência, acometidas por esquecimentos frequentes, troca de letras na prosa e outros lapsos. Pode apontar-se o dedo à permanência excessiva online, que pode por em risco as competências cognitivas. Mas o grande “disruptor”, segundo as evidências científicas, recai na privação do sono, que impede ou prejudica a consolidação de memórias e, devido à fadiga, se reflete em atropelos e erros de linguagem.
Os problemas de ansiedade e o stresse (por exemplo, quantos estudantes não sentem bloqueios antes ou durante uma avaliação?), que ativam regiões cerebrais e conduzem a estados de hipervigilância, a que se soma a libertação excessiva de cortisol, têm consequências nefastas no funcionamento mental: quebras de concentração, falhas de memória e, até, atrofia de zonas do cérebro responsáveis pelo armazenamento de informação). O mesmo se alica aos estados depressivos, que comprometem as funções executivas (neocórtex), como a atenção, o planeamento e a linguagem (por exemplo, demora-se até encontrar as palavras que se quer dizer ou é frequente atrapalhar-se nas conversas).
O neurologista e psiquiatra Martin Hagen Lauterbach, do Hospital da Luz, em Lisboa, reconhece que, nas suas consultas, estas queixas são comuns, também em faixas etárias mais jovens: “Referem que o discurso se altera, que não se lembram das palavras ou do nome das pessoas.” O clínico avalia caso a caso e, quando se justifica, faz-se o despiste de problemas neurológicos através de ressonância magnética ou de uma avaliação psicológica.
Nos casos em que está tudo bem, “averiguam-se outros fatores que possam estar na base das queixas” e que podem implicar fatores como os medicamentos que tomam, (ansiolíticos, relaxantes musculares, calmantes, etc) ou as tais perturbações do sono, que afetam cada vez mais pessoas.
De um modo geral, “os lapsos de linguagem prendem-se com uma monitorização não eficaz no processamento da informação, por estarmos cansados ou sem concentração por algum motivo”, prossegue o médico, admitindo que “os lapsos freudianos existem, na medida em que trazemos à superfície coisas que não queríamos dizer”.
Lauterbach observa que, já no final do século 19, o médico suíço Carl Jung, ainda estudante, se lembrou de analisar a associação de palavras em função do grau de concentração dos colegas. Descobriu que havia maior probabilidade de erros (fonológicos, semânticos), após terem estado de banco, à noite, do que durante o dia, e a razão para isso estava na “desinibição pelo cansaço”.
As surpresas dos neurónios
Um estudo que parece indicar que os lapsos podem ser mais do que o resultado de ‘ficheiros secretos’ que escapam ao nosso controlo é o da neuropsiquiatra Tamar Gollan, da Universidade da Califórnia, em San Diego, que analisou a atividade elétrica do cérebro em pessoas bilingues.
Num artigo recente da BBC, a investigadora esclareceu porque é que falar várias línguas mexe com o cérebro: aquela que não é relevante numa dada situação tende a ser suprimida pelo sistema de inibição que atua nas áreas da atenção e da memória. Contudo, quando esse sistema de controle falha, a inibição insuficiente de um idioma pode fazer com que ele se intrometa e entre em cena.
Assim se explica que nomear coisas possa ser mais moroso, devido aos erros de intrusão (por exemplo, a ler em voz alta um texto com parágrafos mistos, em que era preciso alternar entre dois idiomas). Boa parte das ‘interferências linguísticas’ dava-se quando era preciso mudar de idioma com rapidez, sacrificando palavras, gramática e, até, a pronúncia: “Às vezes, os bilingues dizem a palavra certa com o sotaque errado, uma dissociação que sugere que o controlo da linguagem acontece em diferentes níveis de processamento”, acrescentou a investigadora.
Seja ou não bilingue, a boa notícia é que falar vários idiomas parece retardar o aparecimento de sinais de demência, mas não só: a atividade intelectual e os programas que têm por meta treinar as funções cognitivas e manter, por essa via, o cérebro em forma, parecem reduzir, também, a possibilidade de lapsos.
Por fim, é preciso ter em conta que, por mais ginasticados que estejam os neurónios, combinar aceleração, pouco sono e andar com questões internas não resolvidas que se vão acumulando é a tempestade perfeita para ter surpresas nas interações: há lapsos que podem ser divertidos e converter-se numa história para mais tarde recordar e contar entre amigos; outras, nem tanto. No limite, é lidar, pois não se controla tudo.