Está tudo na cabeça. E na de um adepto de “orgasmos cerebrais”, parte do gozo encontra-se na antecipação do êxtase, ao qual se chega pela porta acústica e visual. A festa dos sentidos, em todo o seu esplendor. Bem-vindos ao cativante mundo dos vídeos, músicas e podcasts com temas eróticos, agora com um novo twist: a ASMR (sigla inglesa para Resposta Sensorial Autónoma do Meridiano).
Na prática, é uma reação fisiológica, descrita como um formigueiro ou dormência agradável no couro cabeludo e na nuca, mas que pode estender-se à coluna e fazer-se acompanhar de estados de relaxamento, euforia e prazer.
A experiência sensorial é desencadeada naturalmente por estímulos, auditivos e visuais, interpretados pelo cérebro como apelativos (alguém a manusear objetos de uma certa forma, sons do ambiente ou de equipamentos a funcionar, por exemplo), mas pode ser induzida e, se os gatilhos forem de cariz sexual, levar a estados de excitação e a novos planaltos de satisfação íntima.
Os vídeos curtos, playlists musicais e podcasts, produzidos por artistas ASMR (“ASMRtists”) com este fim, estão a tornar-se virais, à semelhança dos seus antecessores, no Youtube, que ainda não tinham a libido em mente. O segredo da nova tendência, nas redes sociais e plataformas de streaming, está nos conteúdos, criados para abrir as portas da perceção – as pupilas e o tímpano – e despertar a kundalini, e nos microfones binaurais, que ampliam os sussurros marotos, os sons de lambidelas e as histórias porn (mais soft ou mais hard), para uma experiência mais imersiva.
As atmosferas eróticas, cenários e performances exóticas e intimistas, desenhadas à medida dos fetiches de cada um, têm um poder hipnótico. Assim que a “pastilha erótica” ASMR “bate”, surgem as sensações de “pica”, de arrebatamento e de êxtase, já que o cérebro fica inundado de dopamina, endorfinas e outras substâncias que geram satisfação. Não admira que os adeptos do ASMR queiram lá voltar para mais.
“Sexual healing”
“Posso contar-te um segredo?” Assim começam os áudios do podcast ASMR Erotica. O flirt, em inglês, aparece sob a forma de fantasias, sussurradas, que proporcionam momentos sublimes, capazes de levar quem as ouve ao nirvana.
Este, e outros, disponíveis nas plataformas de streaming como o Spotify, depressa se convertem em companheiros de viagem, ou de cabeceira e, não raras vezes, passam a ser o “convidado desejado” na intimidade dos parceiros.
No Youtube, a plataforma “mãe” do fenómeno, abundam os canais que oferecem doses de surpresa e deleite para olhos e ouvidos. O limite é o da imaginação: arranhar, tocar e massajar todo o tipo de materiais, de forma a evocarem a luxúria; soprar, suspirar ou, ainda, trincar e mastigar alimentos.
O canal ASMR Amy, por exemplo, não deixa ninguém indiferente: numa indumentária sensual, o teasing da artista seduz: ela explora formas, texturas e sonoridades de objetos e do seu próprio corpo, enquanto sussurra mensagens doces ou escaldantes ao destinatário (no singular, leu bem, pois mesmo que os inscritos sejam muitos, cada um se sente o único enquanto assiste), dando um outro impulso aos caminhos da masturbação.
Os vídeos do canal ASMR Erotic cobrem uma série de tópicos: beijos na boca lentos entre duas jovens, mulheres, cujos rostos são parcial ou totalmente visíveis, a estimularem a parte superior do corpo, exibindo a língua e dando instruções mais ou menos explícitas, convidando o corpo e a cabeça a estremecer.
Quem prefere o efeito gerado apenas pelo áudio, tem ao seu dispor inúmeras playlists musicais, como o Tantra & Pleasure, em que as atmosferas sensuais (a fazer lembrar as bandas sonoras de As 50 Sombras de Grey e afins) são condimentadas com vozes suaves, suspiros e gemidos, que apimentam e expandem a experiência sensorial.
Com a mente liberta
A investigadora norte-americana formada em artes, Emma Leigh, dedica-se a estudar a sexualidade mediada pela ASMR (performances íntimas que envolvem o toque e os afetos, em vídeos e jogos). Num artigo publicado na Wired, Leigh referiu que o valor acrescentado destas práticas está em não se centrarem no sexo pelo sexo, investindo mais na dimensão do erotismo.
No mesmo artigo, abordam-se facetas menos normativas da sexualidade, personificadas em artistas ASMR como Eduardo, “ator vocal” e criador de conteúdos e performances eróticas, que tanto agradam ao público feminino como ao masculino com orientação gay.
Os vídeos curtos, playlists musicais e podcasts eróticos estão a tornar-se virais, à semelhança dos seus antecessores, no Youtube, que ainda não tinham a libido em mente
“O tom, a intensidade e o ritmo dos estímulos sonoros e visuais ativam áreas diferenciadas do córtex cerebral e têm um impacto no nosso corpo, mesmo quando não temos consciência disso”, esclarece o psicólogo e ex-sonoplasta da TSF, Mésicles Hélin Berenguel.
Autor de uma tese de mestrado em neuropsicologia, sobre as emoções e o som, ele explica o que nos faz gostar tanto da experiência da ASMR, vista como um condimento imprescindível para outros voos: “O foco intensificado na situação e no momento ‘apaga’ o córtex orbitofrontal, responsável pelo juízo crítico, e liberta a mente dos fantasmas do passado; assim, é possível tirar mais partido e proveito das sensações.” Além disso,
para Berenguel, “a música tem uma dimensão intelectual e emocional e desencadeia um leque diversificado de emoções e estados fisiológicos, à semelhança do que acontece numa relação sexual”. Aliás, as harmonias sonoras têm influência no ritmo da respiração, na frequência cardíaca e nos estados sensoriais: o tango é um bom exemplo, uma vez que “alia momentos calmos e de sedução ao fulgor e virilidade do acordeão”. Quanto à voz, “o tom moderadamente grave e o sussurro têm o efeito de aconchegar e suscitar arrepios involuntários, sendo um elemento-chave no contexto sexual, erótico e amoroso.”
Entretanto, as marcas têm vindo a incorporar a ASMR nas suas campanhas de marketing (IKEA, Netflix, Coca Cola, Apple, McDonald’s, entre outras), as aplicações de saúde mental como a Better Help não a dispensam e, mais entusiasmante ainda, a tendência floresce no admirável mundo dos brinquedos sexuais.
Mais do que sexo
O psiquiatra Tomás Teodoro tomou conhecimento do fenómeno percetivo e emocional através dos pacientes, que o descrevem como interessante e útil, além de “evocar sentimentos de proximidade”.
Mostrando-se aberto às suas potencialidades, o médico acrescenta que “nem todos experienciam estas respostas do sistema nervoso autónomo da mesma forma, por depender da sensibilidade de cada um.”
Os cientistas despertaram para o fenómeno há sete anos, com resultados promissores: ligações neuronais eram mais intensas no córtex occipital, frontal e temporal e com um aumento da atividade da medula espinhal, com relatos de conforto e de intimidade “real”.
Ainda não há evidências científicas sobre ASMR e a libido, e talvez nem seja preciso. Todas as formas de chegar aos píncaros são bem-vindas.
Na sociedade digital que hoje conhecemos, saturada de estímulos, o apelo da ASMR sugere que estamos sedentos de novas dinâmicas. Espera-se que, através dela, os sentidos se agucem, se amplie o bem-estar e se tenham experiências mais vibrantes, também no sexo, com um lugar especial para os sentimentos de intimidade e consolo, os grandes afrodisíacos nos tempos que correm.
Entradas para chegar ao “Oh!”
No universo ASMR, há opções para todos: músicas eróticas, fantasias sussurradas, vídeos sugestivos com gestos e sons de preliminares e histórias que potenciam orgasmos multissensoriais. Descubra algumas
Sexual Therapy
Playlist com 20 músicas sensuais para fazer amor, combinadas com sons eróticos ASMR (Spotify)
ASMR Erotic
Canal do Youtube: incentivos femininos com preliminares (beijos na boca, estimulação de partes do corpo)
Tantra & Pleasure
Música com sonoridades de ioga e meditação e suspiros e vozes em atividades sexuais (Spotify)
ASMR Amy
Os vídeos da artista dirigem-se a voyeurs. Teasing com mensagens eróticas sussurradas e role-play corporal (Youtube)
ASMR Contos Eróticos para Mulheres
“Meditações” guiadas em português do Brasil, que usam linguagem explícita e prontos a “excitar” (no Telegram)
ASMR Eduardo
O artista cria conteúdos à medida e é popular pelos vídeos ASMR e POV com encenações eróticas (Youtube)
*Os vídeos, playlists e podcasts podem estar noutras plataformas, além das citadas