Como frisou, na manhã desta segunda-feira, na apresentação dos dados sobre os abusos sexuais cometido na Igreja Católica, Ana Nunes de Almeida, membro da Comissão Independente de Estudo desse fenómeno, os relatos que se seguem neste texto são dolorosos – muito mesmo – de ser lidos.
“A linguagem transcrita é dura, tensa, comovente como foi a vida destas crianças, hoje pessoas como nós”, sinalizou a socióloga, que deu voz a alguns destes relatos e que a VISÃO agora revela.
A maior parte dos 512 testemunhos expôs que ao mesmo tempo que as vítimas sofriam abusos sexuais na Igreja Católica, ou por alguém ligado à instituição, eram invadidas por sentimentos de culpa; não tendo ninguém a quem contar pelo que passava ou a quem pudesse pedir ajuda. Nalguns casos, a própria família quase que revalidava os abusos, ao apontar culpabilidade à vítima.
“SENTIA MUITA CULPABILIDADE, ATOLADO EM PECADO”
Uma das histórias que chegaram ao grupo de trabalho ter-se-á passado num seminário no Interior do País, tendo a vítima nascida na década de 1950. À Comissão Independente, hoje com cerca de 60 anos, o homem conta que na altura, menino, viu o padre B. “engraçar” consigo. O abusador rumava à sua camarata, com uma lanterna, e apalpava-o, tendo-lhe ordenado que sempre que tivesse pensamentos impuros lhe pedisse rebuçados. “Houve um dia que consegui 26 rebuçados, quando ia seu quarto buscá-los, ele apalpava-me e metia a língua toda. Até que pedi para confessar com outros padres, para não ser sempre o mesmo; só que, entretanto, todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida, através de um amigo que foi contar ao vice-reitor, que me deu um chapadão e me expulsou“.
Tendo ido parar a uma outra instituição, e sendo aí acompanhado pelo Frei W., percebeu que era hábito este clérigo levá-los a “um benfeitor” que dormia com os rapazes. Numa das vezes, acordou com “o pénis dele entre as pernas e todo sujo”. “Depois dizia-me: agora tens de te ir confessar”. Assume que, perante o que lhe acontecia, “sentia muita culpabilidade, atolado em pecado, não contava nada na confissão”.
Não sei descrever isto. Estávamos ali sozinhos numa viagem de turma, longe de casa e dos pais, e não havia nada nem ninguém a quem contar. E só nos consolámos um ao outro; e, desculpem, pois agora estou eu a chorar quando escrevo isto, e não sei mais dele
Vítima de abuso sexual em viagem da escola
Num outro caso, uma vítima relatou a forma de abordagem do sacerdote: “Ele sentava-se numa cadeira de frente para a porta que se mantinha fechada e eu ficava noutra cadeira, em frente a ele, de costas para a porta. Cadeiras muito próximas, demasiado próximas”. Ou em mais um caso, em que, após o sofrimento infligido, o abusador ter-se-á virado para a vítima e dite: “estiveste bem. Deus gostou.
O sentimento de culpa trespassou estas pessoas, como é caso da vítima, na altura uma menina, hoje uma mulher com cerca de 60 anos, que se deparou com um desamparo da família relativamente a algo passado na década de 1970: “Quando contei à minha mãe, ela não acreditou e, ainda pior, disse-me que eu era culpada“.
“MAS ELE DEMOROU TANTO, TANTO, A PARAR DE CHORAR”
Hoje com quase 40 anos, um homem contou a história que se passou durante uma viagem de finalistas da escola, onde ele, na altura com 12 anos, e vários colegas foram abusados por um padre-professor de Religião e Moral “tarado”, no verão de 2000. Sabe que “não foi o único; pelo menos com mais dois rapazes da mesma sala” aconteceu o mesmo.
“Éramos os mais tímidos; talvez os mais medrosos, estávamos juntos. Eu fui uma noite, o F. outra e o H. foi duas vezes – a primeira e a última da viagem. Não me esqueço que o meu amigo não aguentou e numa noite chegou a meio da noite e vinha a chorar; e estava sentado na cama dele no nosso quarto. Ele não disse nada e eu também não lhe contei que já tinha sido vítima disso na noite anterior. Então, perguntei-lhe se ele tinha medo; e ele, a chorar, disse que sim. E eu disse-lhe para ele se deitar na minha cama e assim dormíamos os dois, e adormecemos. Mas ele demorou tanto, tanto, a parar de chorar… Não sei descrever isto. Estávamos ali sozinhos numa viagem de turma, longe de casa e dos pais, e não havia nada nem ninguém a quem contar. E só nos consolámos um ao outro; e, desculpem, pois agora estou eu a chorar quando escrevo isto, e não sei mais dele. No final dessa viagem acabámos a escola, separámo-nos e eu nunca mais o vi. Sei que ele partiu com os para a imigração. Sabem o que penso? Onde andará ele? E se isto for com o meu filho? Filho da puta do padre”.
MENINAS VIOLENTADAS NOS CONFESSIONÁRIOS: “OBRIGAVA A DIZER COISAS PORCAS“
A socióloga Ana Nunes de Almeida adiantou que não há uma preponderância de um local específico onde tenham sido cometidos tais abusos, antes foram vários – “até em altares”. No caso dos que ocorreram em confessionários, as vítimas que viram esta segunda-feira as suas histórias contadas são do sexo feminino.
“Toque e sussurros ao ouvido… Pedia para eu dizer os meus pecados e quando eu dizia que ‘fiz asneiras e disse palavrões’, e tocava-me em todo o lado, maminhas, punha as mãos na cuequinhas e tocava no pipi (…) Tocava, tocava; foram cinco vezes, até que comecei a mentir ao meu pai e deixei de ir… aquele ordinário [padre]!”, relatou uma mulher, a caminho dos 60 anos. Outra, com cerca de 50, disse que o seu abusador era “um monstro que nunca ninguém quis acusar dado o seu poder, que por agora ainda o detém”.
Na casa dos 20 anos, uma jovem contou que, quando teria uns 12 anos e o padre 46, passou por um pesadelo, ao ser assediada, tal como as amigas: “O padre fazia-me perguntas porcas no confessionário. Obrigava as miúdas a dizer coisas porcas. Ele não tocava nas raparigas mas perguntava se nos masturbamos, se enfiamos o dedo, se pensamos em fazer amor. O mesmo acontecia com muitas moças dos escuteiros e da cataquese – várias delas juntaram-se e contaram à chefe, que acreditou no relato delas e disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. Não aconteceu nada. Nada foi feito. Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está. E eu sei que ele ainda faz o mesmo. Fiquei com imensa vergonha e pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados porque tenho medo que me perguntem coisas que me façam sentir porca”.
PADRES ABUSADORES
Tendo em conta a publicitação deste trabalho, houve pelo menos um caso que se passou com um cidadão estrangeiro em Portugal e que fez questão de o relatar. Trata-se de Guillaume. Nascido na década de 1970, Guillaume veio a Portugal passar férias com os pais e o irmão mais novo. O episódio traumatizante pelo qual passou levou-o a contactar a comissão para contar o que lhe aconteceu. No meio da sessão com Ana Nunes da Almeida, a conversa teve der interrompida porque, confessou a socióloga, “Guillaume entrou num choro compulsivo”.
“Tinha 16 anos e visitava então a capela da igreja. Ao saírem, dirigiu-se para a porta e viu o que lhe pareceu ser um padre a chamá-lo com a mão. Tinha uma educação católica e os padres eram alguém em quem se podia confiar. Segue-o. O padre, que teria uns 60 anos, leva-o para o fundo da igreja e mostra-lhe uma Virgem, cujo olhar parecia acompanhar o seu. Achou mágico. Depois, levou-o para a capela, sempre a falar português e com gestos, para mostrar outras coisas: mostra-lhe o dente de uma caveira, e depois os deles. Começa a acariciar-se nas calças, sempre a olhar para Guillaume, que nota que ele [padre] tem uma ereção. Dá-se conta que está sozinho com o padre, que se coloca atrás de si”, descreveu Ana Nunes de Almeida, acrescentando que aquela cena foi interrompida por um outro homem e que o jovem conseguiu fugir para o exterior, onde contou aos pais que “o padre lhe fizera coisas”. “A mãe acabou por lhe ralhar: que mania tens de fugir. Assim ficas a saber que não deves fugir dos pais”.
Nesta sessão de apresentação houve também tempo para contar a história passada há cerca de 50 anos e que foi relatada pela irmã da vítima, nascida nos anos de 1960, após o falecimento do irmão. O abuso aconteceria em casa dos próprios pais, numa “casita” que havia para guardar coisas. “O padre que deveria ter cerca de 40 anos visita a casa após a morte do nosso pai, para dar apoio à nossa mãe”.
“O meu irmão faleceu agora; penso que ele nunca contou nada do que eu vi. E, o que vi, não posso ir para o outro mundo a carregar comigo este segredo. Uma vez na tal casita eu estranhei e quando lá fui espreitar estava o meu irmão, coitadinho – ele era muito bonito e perfeito, muito branquinho de pele. Estava ele despido de calças e roupa de baixo e o padre assim meio que no chão a por o sexo dele na boca. Nunca tal tinha visto; antes essas coisas não se viam. Parecia tudo a passar muito rápido. Fugi com o olhar. E quando voltei a olhar, estava o meu irmãozito – coitadito dele, o que sofreu; sei lá eu o que aquela alma deve ter sofrido – como um animal e o padre por trás a enfiar-se nele. E ele, o meu irmão, aflito, de lágrimas, a chorar. Peço desculpa; não consigo contar mais, mas espero que chegue para saberem que foi tudo verdade“.