Ontem a meio da tarde começaram a chegar os avisos da Proteção Civil, via SMS: “Chuva forte e persistente na sua região nas próximas 24 horas. Vento forte. Risco de cheias e inundações. Fique atento”. Os apelos repetiram-se na comunicação social e nos sites oficiais do Instituto Português do Mar e da Atmosfera e, no centro de Lisboa, vários túneis foram encerrados às 22h, com a polícia a ocupar a via pública a partir do final da tarde. À VISÃO, dois taxistas de Lisboa confessaram que iam parar de trabalhar antes dessa hora, para terem a certeza de que não eram apanhados pelas cheias da semana passada.
A madrugada foi de ventos e chuvas intensos e, de manhã, grande parte da capital estava debaixo de água: às 7h a Proteção Civil pedia à população que não saísse de casa, os carros amontoavam-se em via alagadas e os estragos já eram significativos. Mas os relatos sucediam-se, nas redes sociais ou nos telefones através de mensagens de amigos: “tenho de ir buscar o computador ao escritório” ou “vou só ali ver se…”. Horas de filas, ruas intransitáveis, e as autoridades a ficar sem meios de socorro.
Mas afinal, por que razão as pessoas ignoram os alertas da Proteção Civil, sobretudo depois dos eventos extremos da semana passada, que causaram tantas perdas materiais e até humanas, na grande Lisboa?
“Do ponto de vista psicológico, esse assunto está a ser estudado e intriga alguns investigadores e meteorologistas” que têm feito bastante investigação nessa área, começa por dizer Márcio Pereira à VISÃO. O psicólogo é o responsável Nacional do Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e formador nas áreas de Intervenção Psicológica em Crise e Emergência, Primeiros Socorros Psicológicos e Gestão de Stress. “O não cumprimento desses alertas deve-se sobretudo a uma dessensibilização prévia. Existiram, nos últimos anos, vários alertas por parte da Proteção Civil que não são percecionados como sendo de risco pelas pessoas, que acabam por não atribuir a um evento” a gravidade que ele tem. “A perceção de risco é baixa. Portanto, estamos a falar primeiro de dessensibilização ou de baixa perceção de risco”, começa por dizer. “Sabemos que algo que melhora a adesão [da população aos alertas] é haver múltiplas fontes e credíveis”, pelo que, acredita, haver uma comunicação coordenada por parte de autoridades e comunicação social é algo que deve continuar a acontecer.
“Quem não está dessensibilizado? Quem mora nas áreas afetadas”, esclarece. “Já quem não sofreu danos pessoais poderá correr maior risco de ignorar esse alerta”, lamenta o especialista.
Mas haverá outras explicações. “Existem outras pessoas que têm menor tendência para aderir a esse alerta, o que deriva também – segundo alguma investigação que tem sido feita – de um entorno de um conceito de ser corajoso”, explica Márcio Pereira. É como se, para algumas pessoas, o facto de procurar abrigo ou de ficar parado, como é pedido neste caso, der uma perceção de medo ou de falta de coragem a quem está à sua volta. Para não parecerem pouco corajosas, “são impelidas a encarar riscos desnecessários”, adianta ainda. “Tem que ver com um conceito de coragem. «Vou ficar em casa por causa de uma chuva?» Há mesmo quem acredite que enfrentar este risco é ser corajoso”.
E há ainda quem ache que, se estiver exposto durante pouco tempo – “vou só ali buscar o computador” – corre um risco menor.
Para além daquelas que pessoas que ignoram os alertas porque estão a tentar salvar os seus bens, o que acaba por ser mais compreensível ainda que o risco a correr posa ser muito elevado, há ainda um outro fator que pode explicar esta relutância em acatar as ordens das autoridades, adianta o especialista em Intervenção Psicológica em Crise e Emergência.
“É o que chamamos de reactância psicológica: a tendência que eu tenho para aceitar instruções externas ou não. E as pessoas mais reactantes têm tendência para dizer ‘não’ às ordens que lhes são impostas. É uma característica psicológica que também ajuda a explicar isto”, esclarece Márcio Pereira. “São aquelas pessoas de quem comummente dizemos que são do contra”, explica divertido. “É um traço que faz com que a desconfiança no outro e nas externalidades faça com que tenha tendência para fazer o contrário do que lhe é dito”.
Diversificar comunicação e alterar escala de risco
Para Márcio Pereira, é fundamental – e urgente – apresentar estas comunicações de formas diferentes: sobre a forma de gráficos, com mais apelo visual e com uma escala analógica de cores, por exemplo, que faça com que as pessoas entendam o risco de cada evento. “Hoje, quando as pessoas ouvem um alerta laranja pensam que já o ouviram tantas vezes que o termo deixou de fazer sentido”. E não reagem em conformidade.
Por isso, sugere, seria importante ter uma equipa multidisciplinar constituída por meteorologistas, psicólogos e investigadores de várias outras áreas para se conseguir trabalhar na implementação de uma nova perceção de risco que coloque, efetivamente, as pessoas em segurança. Porque, recorda, “a perceção de risco também é diferente em várias populações”, o que exige que seja feita uma escala mais clara e mais concreta, facilmente compreensível e que efetivamente funcione na mitigação de eventuais danos. Até lá, é tentar comunicar da forma mais eficaz e original possível, para que os alertas não sejam ignorados como tem acontecido até agora.