As imagens são tão deliciosas que agradecemos Nuno Markl não as ter apagado da sua conta de Instagram, onde tem mais de 823 mil seguidores. Mas aquilo que o comediante escreveu na rede social no espaço de poucas horas de terça-feira, 6, é revelador dos sentimentos ambivalentes que a nova ferramenta da app Lensa – Magic Avatars (avatares mágicos) – tem provocado nos últimos dias.
“Sei que anda toda a gente a fazer isto mas, caramba, é irresistível. Servi uma catrefada de fotografias à Inteligência Artificial. Em troca, ela deu-me uma variedade de pinturas da minha fronha, nas mais diversas estéticas e com os mais diversos níveis de dignidade”, começou por escrever Markl, ao partilhar dez retratos gerados através de inteligência artificial, a partir de fotografias suas.
“Numa das fotos eu estava a segurar um peluche d’O Homem Que Mordeu o Cão [rubrica que criou há 25 anos na Rádio Comercial], o que fez a IA salpicar várias imagens destas com estranhos bonecos à minha volta”, contou. “Mas quando lhe dá para fazer de mim um senhor digno e sexy, a IA também dá tudo, caneco (Feito na app Lensa).”
Poucas horas depois, o humorista (e argumentista e radialista e apresentador de televisão e também ilustrador, o que para este caso é relevante) faria marcha-atrás, escrevendo nos comentários à sua própria publicação: “Como acontece frequentemente com as trends com que toda a gente se diverte na net, no momento em que eu chego dita o timing que surge uma revelação terrível sobre as ditas coisas. Vou já desinstalar a app, malta. De facto é criminoso e eu não sabia. Adorei os 30 segundos que passei com ela.”
O momento escolhido não terá sido o melhor, mas Nuno Markl não apagou a publicação, repita-se, embora tenha agitado uma bandeirinha vermelha à aplicação Lensa que, quatro anos depois de ter sido lançada, é a tendência mais popular das redes sociais.
Podemos continuar a ver os seus retratos artísticos, criados de acordo com determinados temas (a app propõe do Sci-fi ao Mystical, passando pelo Stylish, o Anime, o Cosmic ou o Adventure, entre muitos outros), e até eleger o Markl-minion como o mais divertido deles todos, mas, depois de lermos a palavra “criminoso”, já não a conseguimos desver.
Exagero do comediante? Talvez algum exagero, sim, apesar de também termos lido, como com certeza ele também leu, palavras como “plágio” e “roubo” nas notícias sobre a nova ferramenta da Lensa.
Mas vamos por partes. E comecemos pela facilidade.
IA TREINA EM TODAS AS FOTOGRAFIAS
A aplicação já andava por aí, à disposição de quem queria uns bons filtros para aperfeiçoar um retrato, mesmo correndo o risco de vir a desapontar os seus pretendentes no Tinder e quejandos. Agora, com estes novos Magic Avatars, quase basta uma pessoa clicar numa barra amarela para surgir, não apenas numa versão melhorada de si própria, mas transformada em diferentes personagens que poderiam figurar em livros ilustrados ou mesmo em telas de artistas renomados.
Escrevemos “quase” no parágrafo anterior porque, antes de a pessoa clicar na tal barra, tem de descarregar dez a vinte fotografias suas (sejam elas selfies ou retratos, tirados em diferentes ângulos e sempre sozinha) para se tornar, em poucos minutos, em versões idealizadas de si própria. E é aí que começam os problemas ou, pelo menos, as críticas à Lensa. Seja já na subscrição (em que, conforme o preço, se pode “encomendar” até 200 avatares) ou ainda no período experimental de sete dias, o potencial interessado cede para sempre os direitos sobre as suas fotografias.
Nada que a maioria das pessoas não esperasse, escreva-se. Já é habitual este tipo de apps fazerem essa exigência rapidamente ultrapassável pela curiosidade. É muito fácil encolher os ombros e clicar no “sim”, como quem não repara naquilo que está a fazer. Quantos inquéritos e quizz online não fizemos oferecendo de bandeja os nossos dados mais básicos?
Nesta fase do campeonato, a única zona cinzenta será o eventual acesso da aplicação a todas as outras fotografias que temos armazenadas no telemóvel. O que já aconteceu a algumas pessoas terá sido uma mera coincidência? Como é que o decote e o soutien da socióloga brasileira Marilia Moschkovich apareceram num dos seus avatares, sem que ela tivesse descarregado a fotografia na app?
Mais: muito boa gente dá de barato a privacidade, mas será que o faria de modo tão ligeiro se soubesse que as suas fotografias são usadas pela Inteligência Artificial para treinar “a mão” na nuvem da própria app (isto embora os seus responsáveis garantam que elas são apagadas após a utilização)?
Quando a famosa aplicação russa FaceApp se tornou viral, os seus criadores disseram que poderiam armazenar as fotos na nuvem apenas “por razões de tráfego de desempenho”. E garantiram que apagavam a maioria das imagens no prazo de 48 horas. Sim, leu bem, a maioria. Na Lensa, um prazo semelhante será suficiente para a IA ir treinando.
PLÁGIO OU MESMO ROUBO?
Finalmente, vem a questão dos direitos de autor dos artistas em que a Inteligência Artificial se “inspira”. É sabido que esta app recorre a bancos de imagens do Flickr, DeviantArt, ArtStation, Pinterest e Getty Images. E que, embora a IA não utilize as imagens reais dos artistas, elas servem de modelo para ajudar a criar os “avatares mágicos”.
E os responsáveis da empresa tecnológica Prisma Labs, dona desta aplicação de edição de fotografias, não parecem sequer preocupados em escondê-lo. Em muitos dos novos retratos conseguem-se descortinar as assinaturas das ilustrações que lhes serviram de base ou pelo menos parte delas – sem que os seus autores ganhem um tostão com isso.
Nos últimos dias, as denúncias têm surgido nas redes sociais, com várias pessoas a apresentarem provas como as que se veem facilmente num fio no Twitter, criado pela artista gráfica e designer americana Lauryn Ipsum.
Os mea culpa sucedem-se, desde então.
Ao perceber que a app recorria a uma base de dados composta por arte digital usada sem a autorização dos artistas, foi isso mesmo o que o escritor e crítico de cinema brasileiro Pablo Villaça fez no Twitter, onde tem mais de 290 mil seguidores. Uns dias antes, tinha publicado dez avatares no Instagram, onde é seguido por quase 54 mil pessoas, escrevendo: “Ok, me rendi à trend”. Não demoraria a arrepender-se.
“Há alguns dias, mudei minha foto nos perfis em redes sociais para uma ilustração feita através do aplicativo Lensa”, twittou. “O que eu não sabia (e devia ter me informado) é que o app usa obras criadas por centenas (ou milhares) de artistas sem permissão para ‘treinar’ sua inteligência artificial, emulando seus estilos de modo inquestionável. Em alguns casos, restos da assinatura do artista são vistos.”
“Não sei se a palavra ‘plágio’ se encaixa neste contexto – possivelmente não –, mas há uma dubiedade ética evidente na conceção do app e que fere artistas que passaram anos refinando suas técnicas. Como alguém que sempre condena o uso do trabalho alheio sem créditos, descobrir estes detalhes sobre o app Lensa me levou a mudar minhas fotos de perfil para a versão antiga. Não quero ser cúmplice de algo que prejudica uma classe (artistas) que já tem problemas suficientes”, nota.
“Tudo isso, por sinal, me levou a refletir sobre algo que eu deveria ter pensado já de início, que não dependia de informações adicionais para considerar: de um ponto de vista puramente financeiro, o app é por si só problemático, desvalorizando o trabalho da classe. Como alguém que construiu uma carreira baseada na escrita, me incomodaria imensamente ver pessoas pagando um app pela criação de textos (críticas ou contos, por exemplo) em vez de valorizarem o trabalho original de autores de carne e osso. Então como posso justificar usar o app? Bom, quis só fazer esse reparo tardio aqui. Cometi um erro e fui contraditório com meus próprios valores. Mea culpa.”
‘EM ARTE, É TUDO APROPRIAÇÃO’
Não é a primeira vez que a artista plástica portuguesa Lia Ferreira pensa no assunto da apropriação do trabalho de outros artistas. “Na chamada arte tradicional, sem ser através da Inteligência Artificial, sempre houve essa questão”, lembra.
A primeira vez que se questionou foi quando começou a fazer uma série de pinturas a partir de fotografias de coreografias de Pina Bausch. “As fotografias eram registos, o trabalho de alguém, mas foi sobretudo pela coreografia em si, porque os trabalhos da Pina Bausch já são pinturas no palco, são apresentações muito visuais. Senti que o melhor daquilo tudo era o trabalho dela e não o meu. O que ela propunha é que era espetacular. Então, parei de fazer essa série”, conta.
Uns dias depois, o assunto surgiu em conversa com um professor, no Ar.Co, em Lisboa, que lhe disse: “Em arte, tudo é apropriação. Tudo o que tu vês impressiona-te, mas, se não te sentes confortável, paras.”
“Isso já eu tinha feito”, ri-se Lia. “Já tinha começado a arranjar modelos e a insistir mais em auto-retratos. Mas o que ele me disse não deixa de fazer sentido – sim, toda a arte é apropriação.”
“Claro que há pessoas que levam a um extremo, fazem quase cópias”, nota. “Lembro-me de um pintor que pegava em imagens de BD e reproduzia pedaços em tela, alterando apenas pequenas coisas, às vezes só um tom. Achei que era roubo, não gostava que me fizessem aquilo”, recorda.
“Mas, muitas vezes, os artistas apropriam-se do trabalho de outros para lhes responder. Há um diálogo. Isso sempre aconteceu. O Picasso pegava em coisas dos mestres da pintura… Há uma apropriação, há. Sempre houve e vai continuar a haver.”
Quanto a retratos digitais feitos através da Inteligência Artificial, Lia, que é uma exímia retratista, como se pode comprovar no seu site, torce o nariz. “Há apps que fazem ao estilo deste ou daquele autor, mas não é arte porque não é feito por um ser pensante. Não tem uma intenção. É como fazer um resultado matemático numa equação – não há uma intenção artística. E chateia-me que alguns órgãos de comunicação social tenham começado a utilizar esse tipo de imagens”, confessa. “Pode parecer interessante, mas não é a mesma coisa.”
A todas estas críticas os interessados têm respondido “sim, pois, está bem, mas vou experimentar”. Só em novembro, a Lensa foi descarregada mais de 1,6 milhões de vezes – mais 219 mil downloads do que em outubro.
No Brasil, a atriz Deborah Secco testou a app logo em 30 de novembro, publicando os seus avatares nas redes sociais e perguntando: “Meu avatar no #lensa. Gostaram?”
Pouco tempo depois, também o youtuber e publicitário argentino (“de coração brasileiro”) Federico Devito não resistiu à curiosidade e gostou muito do resultado. “Já pode ter medo de robô!? Essas imagens foram criadas com inteligência artificial, o app Lensa pega algumas fotos suas e recria sua identidade visual em diferentes ângulos e cenários. Eu amei minha versão elfo e vocês?”, publicou no Instagram.
No pólo oposto, temos Gregorio Duvivier a detestar a ideia. “Que negócio horroroso esse Lensa. Todo o mundo com a mesma cara de harmonização digital”, twittou o humorista brasileiro, fundador do coletivo Porta dos Fundos.
ABRIU-SE UMA CAIXA DE PANDORA
Um tweet de Peter English, um treinador de cães americano, de Portland, Oregon, deixou-nos a pensar se não estaríamos negligenciar a eventual bondade da coisa. “Acabei de ter uma conversa interessante com a minha mulher sobre a Lensa, e como há realmente algo de muito valioso que sai dela, que é a capacidade de pessoas de diferentes tipos de corpo, raças e géneros se verem a si próprias como arte”, escreveu.
“As pessoas que estão fora das normas sociais de beleza raramente são retratadas na arte, e mesmo assim são mais raramente retratadas como alguém que é belo ou desejável. Mas porque a IA não se preocupa com o peso, a idade, etc., permite que as pessoas se vejam de formas que não se veriam a si próprias”, lembra.
Mas logo volta ao cerne da questão: “É uma nuance interessante para toda esta conversa, mas ainda assim trama qualquer pessoa que use imagens geradas por IA para evitar ter de pagar a um artista.”
A verdade é que se abriu uma caixa de Pandora – e não é só porque, ao contrário do que preconiza Peter English, as pessoas podem comparar a versão artificial com a real e ficarem com a auto-estima ainda mais em baixo.
Tudo o que descarregamos em aplicações deste tipo corre o risco de ficar algures no céu internético, e mais tarde ser utilizado para outros fins, fora do nosso controlo. Para fabricar falsos nudes, por exemplo.
“Apesar da política de utilização ‘sem nus’ da Lensa, os utilizadores acharam alarmantemente simples gerar imagens nuas – não só de si próprios, mas de qualquer pessoa de quem tivessem fotografias”, lembra-se no site Futurism, sediado em Nova Iorque.
“A facilidade com que se podem criar imagens de qualquer pessoa que se possa imaginar (ou, pelo menos, de quem se tenha um punhado de fotografias) é aterradora”, escreveu, por sua vez o jornalista Haje Jan Kamps, na revista online Techcrunch.
Kamps testou a capacidade da app de gerar pornografia, alimentando-a com fotografias de caras de pessoas famosas “coladas” em figuras nuas. Para seu “horror”, as imagens desativaram manualmente qualquer uma das proteções da aplicação.
Só esta brecha na segurança da Lensa já é bastante para resistirmos à tentação de nos transformarmos em “avatares mágicos”.