Um amigo revela um segredo, expondo informação confidencial, com prejuízo para a pessoa visada. Um dos membros do casal desqualifica o outro em público, com implicações nefastas para o relacionamento amoroso. Na escola ou no local de trabalho, um colega agride ou coage o outro, abalando a sua autoestima e o seu rendimento. Estes são alguns exemplos de situações que deixam um sabor amargo e ficam a circular na memória e causam um crescente mal-estar. Entre exigir um pedido de desculpas, retaliar (fazendo juz ao ditado “olho por olho, dente por dente”) ou perdoar (quem não se lembra da expressão “compreender e dar a outra face”), a resposta está longe de ser linear.
Do ponto de vista evolutivo, perdoar não é uma resposta natural, na medida em que fomos programados para não sermos presas de potenciais predadores e aprendemos a evitá-los para não ter dissabores.
Por outro lado, também somos seres gregários dotados de consciência e linguagem, que nos permite desfazer equívocos, corrigir comportamentos que causaram estragos por não se terem medido consequências e, ainda, mostrar arrependimento pelo dano infligido, durante um conflito em que se reagiu a quente.
Idealmente, perdoar é uma resposta emocionalmente inteligente que liberta as partes de um impasse e abre portas para resolver um problema e, até, aproximar quem ofendeu e quem ficou magoado, na escola, na família e nos relacionamentos entre amigos e casais. Vejamos as duas reações mais comuns face a este comportamento, estudados pela Ciência.
“Prefiro não o fazer”
Uma investigação conduzida pelo psicólogo social James McNulty, publicada há dois anos, mostrou que essa abordagem é mais complexa do que parece e pode ter custos, por poder passar a mensagem ao ofensor de que é ok sofrer transgressões futuras, com implicações no bem-estar psicológico de quem desculpa o gesto impróprio. Na prática, o estudo sugere que a motivação do “culpado” e a forma como ele se pauta após o incidente é que vai determinar se perdoar se apresenta como uma escolha positiva e saudável.
“Faço-o pelo meu bem-estar”
Numa ótica individual, perdoar é uma decisão voluntária, interna, que passa por deixar ir pensamentos e sentimentos negativos, como a amargura, a raiva e a vontade de vingar-se da pessoa que causou prejuízo numa dada interação, independentemente de ela o merecer. Assumir essa escolha pode ser libertador, na medida em já não se fica refém de um acontecimento passado que contamina as ações presentes e futuras. Numa investigação sobre os efeitos protetores do perdão na saúde, o psicólogo americano Loren Toussaint, que dirige o Laboratório de Investigação da Mente, Corpo e Espírito no Luther College, em Decorah, no Estado do Iowa, avaliou os níveis de stresse e da prática do perdão numa amostra de 148 adultos jovens. Os resultados permitiram concluir que a tolerância e a capacidade de perdoar contribuíram para minimizar problemas de saúde relacionados com o stresse e para ganhos em bem-estar, alinhando-se com outros estudos em que se verificou uma redução das queixas psicossomáticas e de perturbações psiquiátricas.
Um antídoto para narrativas de ódio
Olhando para a questão numa perspetiva mais abrangente e não dicotómica, a jornalista Marina Cantacuzino estuda há vários anos famílias que foram alvo de atos de terrorismo e sobreviventes de violência doméstica e quis perceber porque é que algumas delas conseguiam perdoar quem lhes fez mal. A partir dessa investigação, fundou o Projeto do Perdão e o F (de forgiveness) Word Podcast em 2004.
Em cada episódio, conversa com um convidado que encontrou um caminho para superar uma grande dor ou trauma na sua vida. No site pode ler-se que “algumas pessoas perdoam quem os prejudicou, outras lutam para se perdoarem a si mesmas, mas nem todos são capazes de fazê-lo”. Compreende-se: libertar-se da bagagem do passado requer alguma fibra emocional e tem a ver com a história de vida de cada um. No programa, fala-se com frequência da procura de significado para aquilo que se viveu e da força que resultou da vulnerabilidade assumida no processo.
A iniciativa pioneira tem por meta compreender o poder das narrativas que restauram a esperança e a empatia e podem, desse modo, quebrar o ciclo do ódio e da desumanização através de narrativas reparadoras que têm o poder de transformar vidas. Fazendo uso de dinâmicas de grupo e do storytelling (contar histórias), o projeto ajuda quem precisa a encarar um acontecimento negativo e, por vezes traumático, com um novo olhar, de forma a que essa herança não hipoteque os seus relacionamentos futuros, no plano pessoal, profissional, social e coletivo.
Mitos a desfazer
Aqui chegados, é útil clarificar aquilo o conceito de perdão, definindo aquilo que ele não é:
- Deixar passar ações moralmente reprováveis e danosas (por exemplo, bullying) e fechar os olhos ao sucedido como se não se tivesse passado nada
- Fazer justiça ou obter a reconciliação, como pode esperar quem foi vítima de abuso ou de violência doméstica e, mais das vezes, sem sucesso
- Um sinal de fraqueza, restando ao ofendido ser compreensivo com o outro por tal ser socialmente desejável, ainda que não sinta isso dentro de si
À luz da Psicologia Positiva, perdoar é conseguir pôr-se nos sapatos da pessoa que causou dano e, no mínimo, compreender o que a terá levado a agir como fez. Isso pode ser suficiente para sair do ciclo da ruminação e do ressentimento e ver-se a si mesmo de outra forma, no presente. Perdoar é algo que pressupõe, também, uma boa estrutura psicológica, uma base segura para desenvolver resiliência e crescimento pessoal.
Uma estratégia salutar

Na sociedade atual, que fomenta a competição, é tentador seguir a via mais instintiva, em que comportamento gera comportamento, mas isso tem um problema: perpetua-se o ciclo. Porém, usar o cérebro pensante (neocórtex) e a inteligência emocional (empatia, compreensão e desprendimento) parece ter a vantagem de vislumbrar soluções mais adaptativas, desde que seja respeitado o tempo interno de cada um para lá chegar, com ou sem ajuda.
João Paulo Ribeiro é psicólogo clínico e psicodramatista e trabalha em contexto hospitalar bem como em consultório privado. “Há situações que foram tão dolorosas e que deixaram marcas para a vida que são imperdoáveis; é aquilo a que chamamos o ódio necessário, porque a pessoa que foi vítima de abuso não pode ser cúmplice com quem a maltratou”, esclarece. No trabalho clínico, pode ser necessário ensinar a pessoa a confrontar o outro, a dizer não e a desligar-se do vínculo hostil, mantendo uma distância segura para não o repetir e conseguir viver a sua vida.
Já nos casos em que a reparação é possível, “ela implica que a pessoa agredida saia do seu próprio conflito e seja um agente ativo, tendo uma conversa aberta, mesmo que difícil, fazendo saber que aquilo não foi aceitável e causou mágoa.”
João Paulo Ribeiro refere o caso de um homem que, durante um exercício de inversão de papéis, conseguiu ver claramente que “o pai, muito rígido, também se tinha sentido diminuído com o seu próprio pai, o que permitiu abrir uma plataforma de diálogo, numa postura empática, e superar o problema”.

A intervenção clínica com a abordagem cognitivo-comportamental é outra das formas de lidar com esta questão. “Quando se decide compreender o outro, que agiu em determinada situação, isso liberta emoções negativas como a raiva, o ressentimento e o rancor, que mantêm um ciclo tóxico”, observa a psicóloga clínica Susana Luz.
A decisão de desculpar alguém não se toma de ânimo leve, pelo contrário. É que, “independentemente do que alguém nos tenha feito, não o perdoar representa uma punição dupla, pelo que aconteceu e por se ficar preso às emoções negativas da experiência”.
Na psicoterapia, a meta é perceber que “guardar esses sentimentos negativos ao longo do tempo é uma escolha”. Ao consciencializar-se do impacto da experiência, exercita-se “o poder de decidir como relacionar-se com isso sem penalizar-se por ter sido vítima”.
Por fim, a psicoterapeuta sublinha que “perdoar não é ilibar o outro ou o próprio da sua responsabilidade, mas sim escolher não se penalizar todos os dias da sua vida”. Trata-se, antes, de “uma oportunidade para nos libertarmos de uma sobrecarga que, muitas vezes, nos domina e bloqueia num ciclo ‘tóxico’, impedindo-nos de estar em paz e de desfrutar do nosso presente de forma mais plena”.