Na década de 1960, uma conceituada agência de adoção de Nova Iorque, nos EUA, em parceria com uma equipa de psicólogos e psiquiatras, separou deliberadamente irmãos gémeos, com o alegado objetivo de descobrir mais acerca de como é definida a identidade humana. Contudo, surgiram muitas questões acerca da legitimidade deste estudo: é justo separar gémeos ou trigémeos bebés para fins experimentais? Que consequências pode ter no seu desenvolvimento? A BBC voltou a pegar neste tema, reunindo respostas dadas por investigadores e participantes originalmente envolvidos na investigação.
Em 1977, Kathy Seckler, na altura com 16 anos, fez uma descoberta que viria a mudar completamente a sua vida. Numa conversa casual, uma amiga disse-lhe que conhecia uma pessoa muito parecida com ela e as duas acabaram por chegar à conclusão de que Seckler e a outra rapariga tinham a mesma data de nascimento e foram ambas adotadas pela mesma agência, a Louise Wise Services.
A jovem rapidamente começou a perceber que eram coincidências a mais e resolveu falar com a outra rapariga, chegando à conclusão de que as suspeitas da amiga podiam estar certas e as duas podiam ser gémeas. Seckler lembra-se “como se fosse hoje” do dia em que conheceu a sua irmã, Lori Pritzl. “Vi a Lori a atravessar a rua com um grande sorriso no rosto. Depois abraçámo-nos. Foi uma boa experiência. Senti-me menos só. Sendo uma criança adotada, sempre me senti diferente”, revelou.
“Foi surreal. Era como se estivesse a olhar-me ao espelho”, referiu, por seu lado, Pritzl. Mas as duas não eram apenas fisicamente iguais. Ambas eram fumadoras, tinham interesses artísticos semelhantes (dança e desenho) e gostavam de música. A morarem a uma distância de apenas 24 quilómetros uma da outra, as semelhanças entre elas já tinham sido notadas por conhecidos que privavam com as duas famílias.
Sem perderem o contacto, as duas irmãs descobriram que fizeram parte de um estudo muito controverso da década de 1960, quando uma agência de adoção novaiorquina e um grupo de especialistas decidiram separar dez conjuntos de gémeos e trigémeos, colocando-os em famílias separadas. Os pais biológicos tinham conhecimento da experiência, mas não contaram a ninguém e, naturalmente, perderam o contacto com as duas filhas.
As irmãs não se conformam com esta decisão e ainda hoje procuram respostas que expliquem o caso. “Fomos privadas de ser irmãs. Foi horrível o que eles fizeram. Já foi bastante desafiador ser uma criança adotada… privar-me de ser gémea e ter uma irmã foi simplesmente horrível”, referiu Seckler.
Nancy Segal, psicóloga e especialista em estudo dos gémeos, vai mais longe e afirma que “qualquer adotado de Louise Wise nos anos 60 tem todo o direito de pensar que talvez tenha um gémeo”.
A investigação que deu origem a um documentário
A história das duas gémeas separadas para fins experimentais não foi a primeira que despontou nas capas dos jornais americanos no século XX. Na década de 1980, três irmãos gémeos descobriram que foram separados à nascença e que fizeram parte do mesmo estudo controverso dos anos 60. Foi precisamente a história destes três jovens que trouxe à tona este caso.
Robert, David e Eddy cresceram sem saberem da existência uns dos outros. 19 anos depois, Robert foi para a universidade e, no primeiro dia de aulas, todos os trataram como se o conhecessem. A ligação foi feita por um colega, Michael Domitz, que tinha partilhado quarto com o irmão, Eddy, no ano anterior. As semelhanças eram visíveis e, após verificar que os dois tinham nascido no mesmo dia e no mesmo ano, Michael decidiu juntá-los. A notícia circulou nos jornais e nas televisões e foi a partir daí que o terceiro irmão,David, foi encontrado, tendo entrado em contacto com Eddy e Robert assim que se apercebeu do que se passava.
O caso, que rapidamente se tornou conhecido, levou a que os três irmãos percorressem todos os programas de televisão e virassem “celebridades”, sobretudo em Nova Iorque.
A história dos trigémeos que foram alvo desta experiência esteve disponível, em 2021 em Portugal, na forma de documentário na plataforma de streaming Netflix. “Three Identical Stransgers” (três estranhos idênticos) recebeu 11 prémios e 59 indicações entre 2018 e 2019. No filme, além do reencontro dos três irmãos, é explicada toda a história por detrás da investigação que os abrangeu.
Para quê haver um estudo deste género? As falhas e perguntas por responder
Os mentores da investigação acreditavam que os gémeos forneciam uma visão única da complexa interação entre a nossa genética e o ambiente em que vivemos. Inteligência, altura e peso, são, por exemplo, importantes influências genéticas. No entanto, a genética não é tudo, apesar de ajudar a explicar porque é que somos diferentes uns dos outros. Tendo isto em conta, os investigadores quiseram ter a experiência de analisar o comportamento de irmãos gémeos em diferentes ambientes em tempo real, determinando a forma como a identidade de uma pessoa pode ser moldada através da educação que teve. Afinal de contas, o que tem mais impacto? Os genes ou a socialização? Para responder a esta e outras perguntas, a equipa levou a cabo uma investigação para estudar de que forma a genética influencia os gémeos que crescem em ambientes socioeconómicos diferentes, sem nunca revelar os verdadeiros motivos às famílias dos participantes.
As gémeas foram submetidas a vários testes antes de saírem de casa dos pais biológicos e os especialistas analisaram os traços relacionados com a inteligência e a personalidade. Tanto as duas irmãs como o resto dos participantes foram colocados em famílias cuidadosamente selecionadas, com base em vários fatores, como a idade dos pais, a situação económico-financeira, a educação e a religião. Lawrence Perlman, um investigador que se envolveu no estudo, tinha o papel de ir visitar os gémeos, testá-los e filmá-los. “Ficou bem claro para mim que as influências genéticas eram muito fortes, não apenas a aparência física, mas toda a sua personalidade”, esclareceu Perlman, que na altura se envolveu no estudo enquanto estudante de pós-graduação.
Contudo, surgiram vários problemas ao longo da realização do estudo, começando pela distância entre os gémeos, que foi mal planeada, uma vez que a equipa apenas se concentrou na área ao redor de Nova Iorque, numa época em que as comunidades eram muito mais unidas do que são hoje. Exemplo disto é o caso das duas irmãs Kathy e Lori, que viviam muito perto e tinham círculos sociais semelhantes. Além desta questão, o estudo levantou questões éticas relacionadas com o consentimento dos pais. Apesar de os pais terem assinado os formulários de consentimento, a pesquisa ocorreu numa altura em que as violações éticas nos trabalhos científicos eram muito comuns. A própria investigação apresentava falhas fundamentais, explica a BBC: os dados que os especialistas recolheram sobre as crianças eram “uma confusão” e o estudo não estava bem organizado. Não foi publicado qualquer artigo científico sobre este estudo, devido a problemas de ética e de consentimento por parte dos investigadores. “Eles realmente não pareciam ter uma compreensão da maneira correta de lidar com isto do ponto de vista científico. Foram ameaçados com ações judiciais e nada foi publicado”, acrescenta Perlman.
A Louise Wise Services, outrora uma agência de adoção respeitada, fechou as suas portas em 2004 e entregou toda a sua documentação e pesquisa a outra agência, a Spence-Chapin. Contudo, todos os documentos relativos a este projeto pertencem ao The Jewish Board of Family and Children’s Services, uma das maiores agências de saúde mental e serviços sociais sem fins lucrativos nos EUA, e estarão selados no arquivo até 2066.
Embora tenha tentado descobrir o papel que os genes e o ambiente em que vivemos têm na construção da nossa identidade, o estudo afetou muitas vidas e famílias. Relatos de problemas relacionados com saúde mental, raiva, tristeza e arrependimento são os mais frequentes nos discursos dos gémeos que participaram neste estudo.