A possibilidade de avaliação dos médicos de família pela realização de interrupções voluntárias da gravidez (IVG) ou pela existência de doenças sexualmente transmissíveis por parte das suas utentes, tem levantado polémica dentro da classe, noticiou esta terça-feira o Público. A ausência destes dois critérios funcionaria como indicador de qualidade e seria reflexo da boa prática clínica na prestação de cuidados de saúde primários. Deste modo, influenciaria a remuneração dos médicos, que teriam direito a um valor adicional ao ordenado base.
A proposta foi enviada ao Ministério da Saúde pelo Grupo de Apoio Técnico à Implementação das Políticas de Saúde, que está a preparar a reforma dos cuidados de saúde primários. E refere-se, concretamente, à introdução de novos critérios de avaliação das Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B), cuja equipa tem uma remuneração variável, associada ao cumprimento de determinadas metas em áreas específicas. Uma delas (entre seis) é a vigilância da mulher em idade fértil em planeamento familiar. “O objetivo do planeamento familiar é evitar a gravidez indesejada e [os médicos] têm de ser avaliados por isso. A qualidade é evitar a gravidez indesejada. É preciso criar condições para que existam consultas de pré-concepção, consultas para quem quer iniciar a sua vida sexual. Se não tiver este indicador [de ausência de IVG] nunca vou criar estímulos para isso”, declarou ao diário João Rodrigues, o coordenador deste grupo de trabalho. Recusou igualmente a ideia de penalização, sublinhando que “o que existe é uma discriminação positiva”.
A Federação Nacional dos Médicos (FNAM) já contestou estes critérios que, apesar de ainda não terem sido implementados – o Ministério da Saúde está a analisar o documento e deverá tomar uma decisão este mês –, já estão a ser monitorizados, tendo em conta uma possível aplicação em janeiro de 2023. “São matérias que têm de ser concertadas com as estruturas sindicais, porque têm a ver com a remuneração dos médicos”, apontou Carla Silva à Rádio Observador, coordenadora da Comissão Nacional de Medicina Geral e Familiar deste sindicato. “A intenção é dificultar a vida aos médicos, para que não atinjam os objetivos”, acusou. Em documento enviado à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, a FNAM defende que “a monitorização das doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres – monitorização que não tem paralelo nos homens – configura uma discriminação de género inaceitável”. Acrescenta ainda que “a inclusão da interrupção voluntária da gravidez neste domínio é sinal de um retrocesso civilizacional e ideológico incompreensível, responsabilizando os profissionais de saúde familiar por uma decisão pessoal, que interessa apenas às pessoas com útero, e traz uma dimensão de penalização às equipas dos Cuidados de Saúde Primários”. O que não aceitam, por isso, é que estas decisões das utentes sejam usadas para monitorizar o trabalho dos médicos e tenham implicações no seu salário.
“A existência de uma mulher com IVG é interpretada como o médico de família não ter feito planeamento familiar. É um indicador que não é aceitável”, diz Maria João Tiago, membro do Secretariado Nacional do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), considerando que a introdução destes indicadores tem a ver com “dificultar o desempenho, quando deveriam ter como objetivo melhorar a prática clínica”.
O coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários desvaloriza a questão, já que o peso que este indicador (em seis áreas, existem 110 indicadores) tem na “componente remuneratória é muito pequeno”.

Para Fátima Breia, presidente da Associação para o Planeamento da Família (APF), “estes critérios não são aceitáveis. Não me parece muito adequado colocar o ónus, por um lado, nos médicos que estão nas USF, dizendo que não fizeram um bom trabalho e, por outro, numa mulher que às vezes pode não ter vindo ao centro de saúde fazer o planeamento familiar ou, tendo vindo, pode ter falhado no seu método de contraceção (todos têm falhas). Ninguém quer que haja IVG, nem mesmo as mulheres que as fazem. Mas, por vários motivos, encontram-se numa situação em que estão grávidas e querem interromper a gravidez e, felizmente, vivem num país onde a lei lhes permite isso”. E especula sobre a pressão que poderão sofrer por parte dos médicos. “Poderão existir colegas a tentar convencer as mulheres a não fazerem algo que lhes assiste por direito”, avisa.
Encontrar indicadores de resultado que sejam fidedignos é, acredita Fátima Breia, desejado por todos os profissionais de saúde, “mas tem de haver bom senso”. “Só podemos ser avaliados pelas pessoas que vêm às USF e fazem aquilo que prescrevemos corretamente. Imagine se os colegas passassem a ser avaliados pelo excesso de obesidade do país…”, exemplifica. Enquanto presidente da APF, não esconde a sua preocupação. “Já estamos a assistir noutros países a um retrocesso na IVG, com partidos conservadores a torná-la ilegal, e isto abre as portas para tudo”, aponta.
Em fevereiro, quando foram assinalados os 15 anos do referendo que aprovou despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o Bloco de Esquerda alertava para o facto de, desde 2018, não serem divulgados dados sobre a quantidade de intervenções efetuadas em Portugal. O último relatório dos registos das interrupções da gravidez (IG), divulgado pela DGS, era de 2018. E refletia uma tendência decrescente: entre 2011 e 2018, o número de IG por opção da mulher nas primeiras 10 semanas reduziu cerca de 28% – de 19.921 para 14.306; comparativamente com o total de 2017, correspondia a uma diminuição de 4%. A VISÃO solicitou esses dados à DGS, mas não obteve resposta.
Acredita-se que os números terão continuado a decrescer. A ausência de dados oficiais, durante a pandemia, lança a incógnita sobre se terá havido uma menor procura das mulheres ou se estas terão encontrado uma resposta do serviço nacional de saúde. O Jornal de Notícias revelou, recentemente, que mais de 600 mulheres optaram por ir abortar a Espanha no ano passado, segundo dados divulgados pela Associação de Clínicas Acreditadas para a Interrupção Voluntária da Gravidez (ACAIVE, na sigla espanhola). O facto de, em Espanha, o prazo se estender até às 14 semanas – em Portugal, há o limite das 10 semanas de gravidez – explica, em parte, a opção.