Vamos pela rua, Alameda das Linhas de Torres fora, com os olhos postos no chão, e eis que topamos com uma placa que nos trava o passo – “25 de Abril de 1974”. Arrepio, é o que sentimos sempre que vemos esta efeméride assim, preto no branco, neste caso, entranhada nas pedras da calçada portuguesa.
A seguir lemos que aqui jaz a Escola Prática de Administração Militar e percebemos que em seu lugar se ergueu o Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC Lisboa). É do solo que sai a frase “ocupou os estúdios da Rádio Televisão Portuguesa” e é ela que nos faz passar os portões para o lado de lá.

Antes, ainda abrimos o QR code que nos manda para o site da Associação 25 de Abril: “No dia 25 de Abril de 1974, estava aqui instalado o quartel da Escola Prática de Administração Militar. Daqui saiu pelas 02H50 desse dia, uma força com o objetivo de ocupar os estúdios do Lumiar da Rádio Televisão Portuguesa, situados na Alameda das Linhas de Torres. Estiveram envolvidos cerca de 100 militares, comandados pelo capitão Teófilo Bento. O capitão Carlos Joaquim Gaspar assumiu o comando da unidade.”
Enquanto vemos o vídeo que mostra imagens dessa ocupação pacífica (só houve uma rajada de tiros pelas 4 da manhã), tentamos descobrir entre os cerca de cem militares José Rosado, à época com 22 anos. Tarefa difícil, pois à nossa espera temos agora um antigo chefe de divisão da Casa da Moeda, cabelo e barba grisalhos, cachimbo meio apagado na mão e pin dourado do MFA [Movimento das Forças Armadas] ao peito.
Valem-nos as suas memórias ainda frescas do tempo em que era cabo miliciano a cumprir aqui o serviço militar obrigatório, para recuarmos 48 anos e tentarmos imaginar como seria o ambiente neste quartel de formação, agora transformado em universidade.

“A PIDE não entrava aqui”, garante. Por isso, foi aconselhado, assim que o colocaram neste quartel, em janeiro de 1974, a não pôr um pé fora do portão, nem sequer para ir a casa, em Campolide. Passava então os dias sem fazer “rigorosamente nada”, além de abrir e fechar a arrecadação de material desportivo de que era responsável. “Cavaqueava”, resume, e dormia sozinho num dos quartos disponíveis [aponta a janela que foi sua, assim que começamos a conversa. Depois ficamos a saber que atualmente, no mesmo sítio, funciona uma residência para estudantes].
E assim foi, até ao 25 de Novembro (quando o correram daqui por questões ideológicas e passou a ser um civil). Com exceção do 25 e 26 de Abril, em que esteve a sitiar a RTP, sem arredar pé. Um mês antes, também estivera pronto para integrar a coluna que defenderia Lisboa (ou na verdade, integrar a coluna que se juntaria aos revoltosos) naquilo que ficou conhecido como o Golpe da Caldas – mas não chegou a ser preciso, porque a operação foi mal sucedida.
Generais sem pão
Quem entra nestes portões, tem de reparar na arquitetura militar do campus universitário. A direção do ISEC Lisboa fez questão, desde que aqui entrou, em 1998, de manter o mais possível a história viva, tendo preservado as fachadas dos edifícios do quartel do Lumiar, deixando, por exemplo, intacto o icónico forno aonde se fazia o pão para distribuir pelos outros quarteis da cidade. Daí que esta unidade tenha ficado com a alcunha de “os padeiros” colada à pele.
A preservação histórica vai ao ponto de ainda podermos encontrar um uma cabina telefónica de madeira, pintada de azul e amarela, que é a marca viva de um episódio caricato durante a atuação de José Rosado na madrugada do 25 de Abril.

É a rir, e com uma pinga de embaraço, que recorda o momento em que, encarregado de cortar as comunicações dentro do seu quartel, já perto da meia-noite, chega à cabina e, em vez de eliminar o cabo com a sua faca de mato, decide ligar à mãe que não via desde janeiro (“650145, dos poucos números que ainda sei de cor”) só para lhe dizer: “Mãezinha, aconteça o que acontecer, gosto muito de si”. Pousa o auscultador e vira costas, convicto de que neutralizara o último posto de comunicação. Por sorte, não houve consequências desta distração.
Antes disso, recebera uma ordem inusitada: “Vai cá ficar hoje?”, atirou-lhe o tenente Matos Borges. “Então esteja na parada, fardado, entre as onze e a meia-noite, que o [capitão] Teófilo Bento vai falar consigo”. Só então percebeu que os oficiais iam envolvê-lo na operação Mónaco [entendida como um jogo de Póker, com muito bluff], o primeiro objetivo a ser atingido pelas tropas do MFA. A conversa foi mais ou menos assim, de simples:
“Nós vamos derrubar o Governo. Contamos consigo?”
“É para já. O que é preciso fazer?”
“É preciso deter o oficial de dia e de prevenção, que não são de confiança.”
“Mais, temos de cortar as comunicações e tomar conta da unidade.”
Depois do episódio da cabina, já em cima relatado, José Rosado integra também a coluna composta por duas viaturas ligeiras e três pesadas. Os cerca de cem homens saem com ele do quartel às duas e meia da manhã, com espingardas automáticas G3, metralhadoras Bren e lança-granadas foguetes na bagagem.

“Isto é um assalto. Vamos tomar conta disto”. É desta frase, outra repleta de simplicidade, que José Rosado se lembra de ter sido proferida à porta dos estúdios da RTP, no momento em que se apresentaram na cancelam, exigindo a sua abertura.
O resto, está escrito num relatório datado de janeiro de 1975 e assinado pelo Capitão Teófilo Bento: “Às 03:25 de 25 de Abril de 74 – hora Indicada no Plano de Operações – eram ocupados os estúdios da R.T.P. no Lumiar, após serem presos e desarmados 3 guardas da P.S.P. Um deles ainda fez menção de sacar da pistola, mas conteve-se a tempo, pois o Tenente Cerdeira e Alferes Geraldes por fração de segundos não o alvejaram. Imediatamente se monta um dispositivo de segurança, comunicando-se a ocupação ao posto de comando. Entre as 04:05 apareceram nos estúdios uma equipa de filmagens jornalistas e guardas da P.S.P. que vêm render os anteriores ficando todos detidos numa sala. Por volta das 04:00 apercebemo-nos que estamos a ser cercados por forças da P.S.P. e vigiados por elementos da PIDE-DGS. Por megafone pede-se para retirarem porque os estúdios estavam ocupados por tropa. Como não se consegue, dá-se ordem aos soldados para dispararem uma rajada para o ar. Em face disso a P.S.P. dispersa e não causa mais problemas.”
Enquanto ocupou a televisão, José Rosado teve tempo para se questionar que espécie de golpe seria aquele em que estava a participar. “Não dava para ser uma mera mudança de patrões, tinha de acontecer uma revolução profunda.” Acertou em cheio.
“Esta unidade era ideologicamente muito forte. Tratava-se de terreno sagrado, o santuário de Fátima do Lumiar. Militarmente, éramos conhecidos como os padeiros, mas em termos cerebrais ninguém nos batia”, conta, sem esconder o orgulho da ter vivido neste pequeno mundo à parte na Quinta das Camélias.
À saída do antigo quartel do Lumiar, torna-se impossível não reparar nas placas comemorativas que estão presas na parede do lado direito. Fazem parte da Associação do Serviço de Administração Militar, coordenada por José Rosado, hoje com 3750 aderentes. Estes militares de todas as patentes organizam, algumas vezes, patuscadas nestas instalações. Quem agora assume as honras da casa são os alunos do curso de cozinha que nessas celebrações servem os antigos ocupantes do espaço, onde até existiu um matadouro.

Antes de passarmos definitivamente o portão, com o bloco cheio de notas revivalistas, ainda ouvimos a frase lapidar, perfeita para encerrar este relato na primeira pessoa: “No dia da revolução, os generais não comeram pão.” E nos dias seguintes, acrescentamos, haveriam de comer aquele que o diabo amassou.