O filme arranca com imagens de Fernando Pereira, acordeonista profissional da velha guarda, que há mais de 30 anos anima bailes e festas populares de Norte a Sul do País, tocando e cantando marchas, tangos, foxtrot e, agora, até kizombas. Vê-se o músico, sozinho, a carregar para uma carrinha, na sua residência, em Boavista dos Pinheiros (Odemira), o material de som de que precisa para o espetáculo que, à noite, irá fazer em Lagos, no Algarve. Será Fernando Pereira a conduzir a carrinha e, chegado ao local, a descarregar e a montar, outra vez sozinho, o sistema sonoro e de luzes, e a testá-lo. Terminado o baile, o acordeonista repetirá toda aquela trabalheira em sentido inverso, de regresso a casa. Também é ele que faz o agendamento dos seus espetáculos (daí a pouco tempo teria outro, na aldeia do Carrasco, igualmente no Algarve) – mas o cansaço nunca prevalece sobre a sua paixão pelo acordeão, que toca desde criança.
Na rodagem daquele documentário (entre 2017 e 2019), intitulado Profissão: Acordeonista, que a VISÃO aqui apresenta em primeira mão e que foi realizado por Samuel Amaro, 42 anos, professor de Música no ensino básico e dono de uma pós-graduação em multimédia, há um episódio de bastidores que vale a pena contar, até porque resume o cerne que conduziu o autor a fazer o filme. Aconteceu que Fernando Pereira pediu para acompanhar Samuel Amaro, quando este se dirigiu a Tavira (Algarve) para entrevistar e filmar João Barradas, “provavelmente o acordeonista com mais prémios ganhos no mundo”, diz o realizador do documentário, o qual constituiu a sua tese de mestrado em Cinema, recentemente defendida e aprovada na Universidade Lusófona, em Lisboa.
“É um prazer conhecer um colega de profissão”, diz a grande estrela do acordeão da música erudita, João Barradas, ao “batido” acordeonista de bailes e festas populares, Fernando Pereira
João Barradas, 30 anos, é a grande estrela da nova geração de acordeonistas portugueses: concluiu o curso de acordeão, no Conservatório Nacional, com 20 valores; com apenas 19 anos, o rapaz de Porto Alto (freguesia de Samora Correia, Benavente) gravou o seu primeiro disco – Surrealistic Discussion; hoje, os seus trabalhos são editados pela nova iorquina Inner Circle Music, e há muito que toca, em festivais internacionais e não só, com destacados nomes do jazz, como, por exemplo, o saxofonista americano Greg Osby. Mas, por mais que o jazz o chame, Barradas define-se assim: “Considero-me um músico clássico que improvisa.”
Temos então, no tal episódio de bastidores atrás referido, Samuel Amaro e Fernando Pereira em Tavira, a dirigirem-se ao encontro de João Barradas, que ali ia dar um concerto. Feitas as apresentações, a humildade de Barradas deixaria Fernando Pereira desarmado e, ao mesmo tempo, encantado. “É um prazer conhecer um colega de profissão”, disse a grande estrela ao batido acordeonista de bailes e festas populares, como recorda o autor do documentário. Samuel Amaro confirmou, uma vez mais, que estava no caminho certo. “A ideia fundamental do meu filme é a de mostrar que, se as pessoas se movem por extratos sociais, o acordeão funciona ao contrário – está em todo o lado, dos meios mais rurais às salas de espetáculo mais elitistas”, diz. “É um fator de união de diferentes extratos sociais e culturais”, acrescenta.
De pequenino…
Embora olhe para a política de forma distanciada (“Acredito mais em pessoas do que em partidos”, diz), o autor de Profissão: Acordeonista aceita que se possa momentaneamente ver, nos cerca de 38 minutos do seu filme, um vislumbre da utópica sociedade sem classes teorizada por Karl Marx. Outro exemplo que o documentário mostra relaciona-se com Inês Vaz, 33 anos, estrela em ascensão, nacional e internacionalmente, na nova geração de acordeonistas. A instrumentista e compositora conta que na aldeia natal do pai, uma terriola no concelho de Mirandela, os avós tinham “um acordeão muito velhote” e a pequena Inês “gostava de brincar com aquilo”. E, quando os pais quiseram que a filha aprendesse a tocar um instrumento, Inês disse-lhes só ter uma escolha: o acordeão.
Mas o que levou a acordeonista que hoje se destaca no clássico/contemporâneo, sem descurar o jazz (lançou em novembro último o seu primeiro álbum a solo – Timeless Suite), a inclinar-se, logo em pequena e irremediavelmente, por tal instrumento? “Eu acho que foi por ser fã do Quim Barreiros”, responde Inês Vaz no filme de Samuel Amaro. “Os meus pais contam que eu sabia as letras dele de cor”, acrescenta. “E não é que eles ouvissem muito” o brejeiro (e controverso) rei nacional das festas populares e académicas, nota ainda a acordeonista.
Se João Barradas começou a tocar em público aos 7 anos, Luís Vicente, outro acordeonista da velha guarda, com uma carreira de mais de 50 anos a abrilhantar festas populares pelo País fora (38 dos quais em duo com a mulher, Ana, que canta), e nas comunidades portuguesas na Europa, lembra-se de que, com apenas 10 anos, fez quatro bailes num só Carnaval. Esses quatro contratos foram arranjados pelo pai, trabalhador rural com baixo salário e grande fã do acordeão, que investiu o dinheiro arrecadado na formação musical do filho, recorda Luís Vicente.
Resumindo para encurtar razões, é como João Barradas diz: “Sempre que oiço um acordeão, seja em que estilo for, relembro a paixão que tenho pelo instrumento.”