Exerce a atividade clínica há cinquenta anos e, aos 76, afirma que “ser psiquiatra é o maior desafio que um médico pode enfrentar”. O ex-professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra é autor de várias obras (Como Tornar-se Doente Mental foi talvez a mais conhecida) e, em Pequena História da Psiquiatria (Dom Quixote, 192 págs., €15,90), revisita as doenças da mente e o caminho feito em pouco mais de um século para chegar a uma visão mais abrangente do funcionamento humano. Cometeram-se erros, mas derrubaram-se mitos e, embora ainda se desconheçam muitos dos mistérios da mente, dispomos de mais recursos, médicos e não só, para retomar o bem-estar psicológico na relação connosco e o mundo
Como está a saúde mental dos portugueses após ano e meio de pandemia?
Já havia coisas que não corriam bem antes, mas agravaram-se devido ao aumento do tempo passado na Internet e nas redes sociais. Houve menos contactos presenciais entre as pessoas. A desconfiança e a paranóia aumentaram. Voltar à normalidade o mais depressa possível e retomar a interação social é fundamental para superar isso.
Hoje, sobretudo nos jovens, começa a ser ok não estar ok e pedir ajuda. Nota isso?
As pessoas estão mais informadas. Quando chegam a uma consulta, é frequente virem com o diagnóstico feito porque pesquisaram na Internet. Em certos casos, podem até saber mais do que o psiquiatra! Por vezes, a classe médica não reage bem, mas há que aceitar isso e ter a humildade de reconhecer que também aprendemos com os pacientes.
Quais as perturbações mentais a que estamos mais expostos, os jovens e não só?
À ansiedade, claramente. Está muito ligada à hiperventilação. Nos casos ligeiros, a solução passa por aprender a regular as emoções pelo treino da respiração, mas também é possível fazê-lo com atividade física e há quem o consiga recorrendo à meditação.
E quando isso não chega?
Em circunstâncias específicas e crises de vida podemos reagir como tendo doença mental, mas depois passa, resolve-se. O problema é quando essa reação se autonomiza e leva a pessoa que teve um ataque de pânico, por exemplo, a andar de médico em médico sem nunca ficar satisfeita. O tratamento psicofarmacológico é eficaz no imediato, embora seja menos sustentável do que a psicoterapia, que tem bons resultados no caso das perturbações neuróticas como ansiedade, pânico, fobias e depressões ligeiras. Daí que seja recomendável a combinação dos dois. Já nos casos mais graves, como esquizofrenia, a psicose ou a doença bipolar, o foco deve ser prevenir e reabilitar.
Ter condutas que fogem à norma ainda é motivo para se ser alvo de estigma?
Nem tudo o que foge ao padrão é patológico. A riqueza humana está na diferença. As pessoas com doença mental reúnem critérios que foram estudados e as tornam semelhantes no modo de funcionar. Por exemplo, tendem a isolar-se, a fugir dos outros, e os outros fazem o mesmo com elas. Isso traz-lhes sofrimento e limita-lhes o grau de liberdade na vida diária.
Como não ser doente mental (ou deixar de sê-lo)?
Todos podemos ter problemas mentais: ficar fóbico depois de ter um acidente de viação, maníaco quando se tem uma paixão, ou um pouco obsessivo após ter feito qualquer coisa e não poder pensar nela. São crises passageiras, mas é preciso estar atento porque a partir de certo ponto podem tornar-se patológicas. As pessoas podem reinventar-se, experimentar outras formas de estar. Grandes artistas tinham patologias e sempre houve uma relação entre criação artística e doença mental. Costumo dizer que um génio é um louco com sucesso e um louco é um génio sem sucesso.
No livro aborda os hospícios, os tratamentos invasivos, a desumanização, a revolução trazida pelos fármacos e refere estudos com terapias promissoras. O que se aprendeu até agora?
Cometeram-se muitos erros. Nos grandes hospitais psiquiátricos, pouco se podia fazer com os doentes, havia a psicocirurgia invasiva. Desse tempo, apenas os eletrochoques sobreviveram. Os fármacos reduziram o sofrimento dos doentes e permitiram devolvê-los à comunidade. Hoje sabemos tratar os doentes, mas o que se passa na mente deles não. Ou seja, ainda desconhecemos os mecanismos que fazem com que esses tratamentos sejam eficazes. Por outro lado, não podemos reduzir as doenças mentais a alterações neuro-químicas. O cérebro e o corpo são estruturas, a mente e a vida são outra coisa. Há que dar esse salto.