Para ir da República do Congo, em África, à cidade de Tóquio, no Japão, há que fazer perto de 13 mil quilómetros em linha reta. O percurso é longo, muito longo, mas no caso de Dorian Keletela, 22 anos, esse caminho demorou milhares de dias a ser vencido, com vários reveses sinuosos que nunca o deitaram ao chão. Quem o vê agora a chegar, calmo, de auscultadores redondos nos ouvidos e andar vagaroso, ao Centro de Alto Rendimento de Atletismo, no parque do Jamor, nem imagina o que passou para aqui estar. E muito menos o que o espera a partir deste domingo, quando desaguar em Doha, no Catar, para um estágio pré-jogos olímpicos. Dorian é o primeiro atleta refugiado em Portugal a integrar a equipa olímpica de outros na mesma condição.
A estreia da equipa de refugiados deu-se na competição de 2016, no Rio de Janeiro, quando os atletas imigrados, hospedados também na vila olímpica daquela cidade brasileira, desfilaram em segundo lugar, logo atrás da Grécia, com a bandeira dos cinco anéis entrelaçados nas mãos. Aliás, será sempre essa a hasteada no caso de algum dos 29 atletas, de 11 países, subir ao pódio em Tóquio. Os eleitos, de entre 55 bolsistas da solidariedade olímpica, só se avistaram uma vez, com um ecrã pelo meio, em videochamada.
“Não fiquei nada surpreendido com o meu apuramento, treinei muito para esse objetivo”
Se forem todos como o congolês residente na Grande Lisboa, não terá havido pingo de vaidade na conversa, apenas aceitação, como se se tratasse do culminar natural de um trajeto de esforço: “Não fiquei nada surpreendido com o meu apuramento, treinei muito para esse objetivo.”
Viva a liberdade
Dorian Keletela aterrou em Portugal a 8 de maio de 2016, com 17 anos, fugido de uma situação difícil, tendo pedido asilo nesse mesmo dia. De imediato, entrou para o centro de acolhimento de crianças refugiadas. “Não foi fácil viver sozinho, com a barreira da língua”, lembra de olhos postos num horizonte para onde, na realidade, nem quer olhar. Planos? “Desde que a vida me trocou as voltas que eu deixei de pensar no futuro.” Por enquanto, valem-lhe os amigos que se cruzaram com ele neste percurso, já que perdeu a família no Congo. Os pais foram assassinados quando tinha 11 anos. A tia, que o acolheu, era uma militante contra o regime daquele país e, por estar sob vigilância, decidiu enviar o sobrinho para uma morada mais segura. Até hoje nunca mais soube dela, por razões de segurança.
Sempre que um jovem refugiado chega a Portugal, tem de responder a um questionário para se avaliar quais as apetências e competências. A seguir, é encaminhado para a melhor solução, de acordo com as respostas. Nessa altura, Dorian mostrou interesse em praticar atletismo. No Congo, sempre gostou de correr, embora nunca tivesse tido formação nesse desporto. Por cá, o Sporting acolheu-o de imediato e deu-lhe as ferramentas de que necessitava para singrar. “O resultado de muito empenho e dedicação ao treino permitiu-lhe excelentes resultados nas primeiras competições oficiais, nos campeonatos de clubes de atletismo indoor, e uma grande visibilidade no Sporting e até ao nível nacional”, recorda Maria Machado, coordenadora do programa Viver o Desporto – Abraçar o Futuro, do Comité Olímpico de Portugal, que o sente quase como um afilhado.

Aos 18 anos, Dorian decidiu sair do centro de acolhimento e passou a receber apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, num quarto alugado. O subsídio que recebia de 264,30 euros por mês não dava para comer, deslocar-se, estudar e treinar. Estes momentos difíceis, em que contava os cêntimos para sobreviver, só terminaram quando o Comité Olímpico, atento ao seu desempenho nas pistas, o submeteu a uma candidatura para uma bolsa da Solidariedade Olímpica. A partir daí, instalou-se no Centro de Alto Rendimento do Jamor, nos arredores da capital. Hoje já vive num apartamento arranjado pelo Sporting, em Porto Salvo, não muito longe do seu local de trabalho. Se um dia enveredar pelo curso de Educação Física, como gostaria, a faculdade também não ficará longe. Para já, o que mais o aflige é aprender bem português, por isso, depois dos Jogos, irá tratar do handicap de que não conseguiu livrar-se. O atleta expressa-se melhor em francês, embora fale mais três línguas do Congo.
Sente saudades do seu país, da vida “normal” que levava – mas não se esquece da falta de liberdade com que tinha de lidar e que o empurrou para Portugal, onde gosta de morar.
A torcer por Portugal
Já passa da hora marcada para o treino, e o velocista começa a revelar algum nervosismo. Afinal, tem o recordista Francis Obikwelu à sua espera, dentro do enorme ginásio em que os atletas se treinam. Em Tóquio, vai tentar a sorte nos 100 metros. Tem os pés às “dez para as duas”, mas isso não o impede de arrasar na pista.
O mestre nigeriano, naturalizado português em 2001, nunca lhe dá descanso – com pesos amarrados às pernas, é vê-lo a erguê-las alternadamente para as tornar ainda mais fortes. Depois, passa para as pranchas laterais que lhe permitem trabalhar os abdominais oblíquos, antes de irem os dois para a pista ao ar livre, indiferentes ao calor intenso deste dia.
A rotina não mudou só porque, em junho, soube que irá estar em Tóquio este mês. Diariamente, o velocista gasta o tartã durante cerca de duas horas, sempre de boné posto na cabeça e com a pala para trás.
Tirámos-lhe as medidas
Nome completo
Dorian Rostan Keletela
Data de nascimento
06-02-1999
Nacionalidade
Congolesa
Naturalidade
República do Congo
Altura
1,75
Peso
73 quilos
Recordes
100 metros – 10’’46
4 x 100 metros – 40’’82
60 metros, pista coberta – 6’’79