A pandemia de Covid-19 tornou ainda mais urgente tratar e prevenir a obesidade. Não dá para usar paninhos quentes quando se sabe que os obesos correm mais 48% de risco de morrer do que as outras pessoas se forem infetados com o novo coronavírus.
Essa foi uma das conclusões preocupantes a que chegou a meta-análise de 75 estudos realizados em vários países, publicada na revista Obesity Review, no final de agosto. “É um aumento de cerca de 50 por cento, um número muito alto e assustador. Todos os dados são, aliás, muito mais altos do que eu esperava”, admitiu na altura, ao The Guardian, o autor principal da investigação, Barry Popkin, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.
A mesma meta-análise concluiu que estes doentes, com um índice de massa corporal superior a 30 (o IMC é a relação entre peso e altura), correm um risco aumentado (em 113%) de acabar numa cama de hospital. E a probabilidade de irem parar aos cuidados intensivos é de mais 74 por cento. “Os obesos são igualmente mais propensos a contrair doenças que dificultam o combate à Covid-19, como a apneia do sono que provoca a hipertensão pulmonar”, sublinhou, ao mesmo jornal, Melinda Beck, coautora do estudo.
Quando também já se sabe que Portugal tem 1,5 milhões de obesos, o que representa cerca de 17% da população, devemos ficar todos preocupados, acredita a médica endocrinologista Paula Freitas. “E ainda mais nesta situação de confinamento”, frisa a presidente da SPEO (Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade). “As pessoas, por fazerem menos exercício físico e por alterarem as suas escolhas alimentares, aumentaram 26,4% de peso durante a pandemia.”
Por tudo isto, surgiram vozes a defender, um pouco por todo o mundo, a prioridade na administração da vacina contra a Covid-19. No programa de vacinação português, as pessoas entre os 50 e os 64 anos de idade, inclusive, com obesidade, estão na segunda fase, que começará em abril. Deveriam ter sido colocadas na primeira?
Carlos Oliveira, presidente da ADEXO (Associação de Doentes Obesos e Ex-obesos de Portugal), confessa-se dividido. “Há gente que precisa mais do que nós, mas sabemos que, se apanharmos este vírus e formos hospitalizados, a situação vai complicar-se.” Ao “medo” que admite existir “evidentemente” entre os quatro mil associados, este ex-capitão da Marinha Mercante contrapõe, pragmático, a dificuldade que seria vacinar os obesos logo na primeira fase, pelo facto de a doença ser tão prevalente no País.
Embora talvez tivesse sido prudente tê-lo feito – e não estamos a pensar apenas na saúde das pessoas com um elevado IMC. Segundo um estudo publicado em fevereiro, na revista PNAS, os obesos serão “supertransmissores”. Isto porque tanto eles como os idosos têm uma maior probabilidade de respirar de forma pesada e expelir grandes quantidades de partículas infeciosas, concluíram investigadores do MIT, do Hospital Geral de Massachusetts e das universidades de Tulane e de Harvard, nos Estados Unidos.
Vacina menos eficaz
A questão da vacinação voltou para cima da mesa no último fim de semana de fevereiro, quando se soube que a vacina da Pfizer/BioNTech pode ser menos eficaz em obesos. Numa investigação liderada pelo virologista italiano Aldo Venuti, do Istituti Fisioterapici Ospitalieri, em Roma, descobriu-se que 248 profissionais de saúde com obesidade produziram cerca de metade da quantidade de anticorpos em resposta a uma segunda dose dessa vacina, em comparação com pessoas saudáveis.
“Embora sejam necessários mais estudos, estes dados podem ter implicações importantes para o desenvolvimento de estratégias de vacinação para a Covid-19 no caso dos obesos”, escreveram Venuti e os seus colegas nas conclusões deste estudo ainda não revisto pelos pares, citado pelo The Guardian. “Se os nossos dados forem confirmados por estudos maiores, dar aos obesos uma dose extra da vacina ou uma dose mais alta poderia ser uma opção a ser avaliada nessa população.”
Barry Popkin já alertara para a hipótese de ser necessário um programa específico de vacinação, aquando da apresentação dos resultados da sua meta-análise, em agosto. “Uma vacina terá um efeito positivo nos obesos, mas suspeitamos de que terá um benefício menor em comparação com as outras pessoas”, afirmou, na altura.
A obesidade é uma doença crónica e complexa, que está associada a mais de 200 outras doenças e problemas de saúde. Um obeso tem uma maior probabilidade de sofrer de diabetes e de hipertensão, uma maior disfunção pulmonar por causa da gordura abdominal e um maior risco de doença hepática e doença renal – tudo comorbilidades que o tornam mais vulnerável no caso de se infetar com o novo coronavírus.
“Para começar, o tecido adiposo não é um órgão inerte”, lembra Paula Freitas. “É um verdadeiro órgão endócrino que produz citoquinas [mensagens químicas], que enviam uma resposta inflamatória. Nos doentes infetados com Covid-19, elas originam um processo inflamatório muito grande e uma diminuição da resposta imune, concorrendo para uma forma de doença mais grave”, nota a médica endocrinologista. “São, por isso, doentes que precisam de mais hospitalização, ficam mais tempo internados, é muito difícil descartar dos ventiladores e com hipóteses aumentadas de morte prematura.”
Doença comportamental?
Parece fácil e óbvio escrever tudo isto em 2021, mas só em 2004 é que Portugal reconheceu a obesidade como doença crónica – e foi o primeiro a fazê-lo na Europa. “Até essa data, ela não passava de uma questão de estética e havia apenas três médicos a tratá-la cirurgicamente”, recorda Carlos Oliveira. Mesmo agora ainda há quem acredite tratar-se de uma doença apenas comportamental, lamenta o presidente da ADEXO. “Como se a culpa fosse exclusivamente do obeso, o que é absurdo.”
Hoje, está cientificamente provado que as causas da obesidade incluem fatores genéticos e que a hereditariedade é responsável por 70% a 80% do IMC. Só depois vêm o sedentarismo, as dietas desequilibradas, a educação, o nível de rendimento (os alimentos menos saudáveis são mais baratos), o acesso a cuidados de saúde e os interesses comerciais (por exemplo, uma maior disponibilidade de alimentos processados).
“Há uns 20 anos que se sabe que a maioria das pessoas obesas é resistente à leptina, uma hormona que diz ao cérebro a quantidade de energia que está armazenada. Logo, é um indivíduo que não consegue queimar a gordura, mas vive sempre com a ordem para comer e a ordem para não gastar. E vive com isso toda a sua vida! Nenhum país consegue estar em guerra permanente”, compara Carlos Oliveira, “mas a pessoa obesa vive permanentemente com estas ordens do cérebro. Se fosse só comportamental era mais fácil, embora tenhamos grande esperança na investigação.”
O tratamento que está mais ao virar da esquina é o semaglutido, uma versão sintética de uma hormona que atua suprimindo os centros de apetite no cérebro. Em Portugal, já houve ensaios clínicos com este fármaco “e com bons resultados”, nota Paula Freitas. “Víamos quem estava a fazer o semaglutido e quem estava a fazer o placebo porque os primeiros perdiam peso a olhos vistos.”
No final de fevereiro, investigadores da Universidade Northwestern, em Chicago, nos Estados Unidos, apresentaram resultados “significativos” de um ensaio em que foi administrado semaglutido a 611 adultos com excesso de peso ou obesidade. Um tratamento de 68 semanas com semaglutido subcutâneo uma vez por semana versus placebo, combinado com terapia comportamental intensiva e uma dieta de baixas calorias nas oito semanas iniciais, resultou em reduções em peso corporal de 16% versus 5,7%, respetivamente.
“É de longe a intervenção mais eficaz que vimos para controlo de peso quando comparada com muitos dos medicamentos existentes atualmente”, escreve Robert Kushner, autor principal do estudo, na revista científica JAMA.
Em Portugal e no resto da Europa, existem, para já, três fármacos que tratam a obesidade. O primeiro a entrar no mercado português foi o orlistato, que impede a absorção de 30% da gordura da dieta e já demonstrou ser eficaz na redução do peso, do perfil lipídico e da gordura visceral, além de reduzir a progressão da diabetes.
Depois, chegou o liraglutido 3 mg, que reduz o apetite, aumenta a saciedade e atua ao nível do tubo gastrointestinal, sendo eficaz também na redução do perfil tensional e da apneia do sono, e podendo levar à regressão da diabetes.
Por fim, existe a associação fixa naltrexona/bupropiom, que também é eficaz na redução do peso, do perfil lipídico e da gordura visceral, e, tal como o liraglutido, reduz as compulsões alimentares. “Petisca-se menos”, exemplifica a presidente da SPEO.
Ao contrário da cirurgia bariátrica, nenhum destes fármacos é, porém, comparticipado pelo Estado e os tratamentos custam entre 120 e 150 euros por mês. “O que é que o médico de família tem para oferecer aos doentes que não têm indicação para cirurgia nem dinheiro para o medicamento? É uma grande discriminação que queremos ver abolida o mais depressa possível”, admite Carlos Oliveira.
No Dia Mundial da Obesidade, que se celebra a 4 de março, a ADEXO e a SPEO uniram-se para apresentar um documento em que propõem estratégias para derrubar as barreiras no tratamento da obesidade em Portugal. Além de um sistema de saúde focado nas consequências e não nas causas, da pouca formação dos profissionais de saúde e da falta de consultas de obesidade nos centros de saúde (multidisciplinares, com nutricionistas e psicólogos), é, precisamente, a não comparticipação nos fármacos que veem como mais urgente.
O mais urgente, mas não o mais importante. À cabeça de quem luta contra a obesidade está sempre acabar com a ideia errada e estereotipada de que “só é gordo quem quer”.
Um preconceito antigo
O estereótipo contra os gordos pode vir do tempo das cavernas. Segundo a psicóloga Janet Tomiyama, especialista em comportamento alimentar e investigadora da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, corpos diferentes podiam significar risco de doença, sendo, por isso, percecionados como uma ameaça à tribo. Nunca, porém, a gordura foi estigmatizada como nestes nossos tempos de culto do bem-estar. Um estigma que não belisca apenas a autoestima de quem tem peso a mais. Segundo um estudo publicado em 2015, na revista Psychological Science, as pessoas gordas que se sentem discriminadas têm uma esperança de vida mais curta do que aquelas que não sofrem com o preconceito. A modelo plus size americana Tess Holliday sabe bem o que é ser criticada pelo excesso de peso. Aos 35 anos e com 130 quilos, descreve-se como uma “ativista pelo corpo positivo” e não deixa que os comentários menos simpáticos a deitem abaixo. Em outubro de 2018, quando foi capa da Cosmopolitan no Reino Unido, foi acusada de estar a promover a obesidade.
Bastam uns quilos a menos
Segundo a Agência Europeia de Medicamentos (EMA), um fármaco é considerado eficaz se originar uma perda de peso na ordem dos cinco por cento.
“Dá-se uma melhoria dos parâmetros mecânicos e pode ser a diferença de um indivíduo passar da toma de dois hipertensores para um único”, ensina a médica endocrinologista Paula Freitas.
“Então se a perda for de 15%, o doente pode deixar de ser diabético ou de precisar de usar um aparelho para dormir. E se antes não conseguia apertar os sapatos, agora já consegue.”