“Discutir com um narcisista é como ser preso: tudo aquilo que disser pode ser – e será – usado contra si.” Este é apenas um dos muitos memes que circulam na internet sobre uma das mais “famosas” perturbações de personalidade. Na categoria dos “cartoons”, há uma versão adaptada de “Onde está Wally?” com o seguinte repto: “Conseguem encontrar o narcisista escondido nesta imagem?” Entre as muitas galinhas, todas iguais, destaca-se o balão “Yoohoo! Estou aqui! Olha para mim!!”
Costuma dizer-se que toda a gente bate no mais pequeno da hierarquia. Será que “eles” (ou muitos de nós) se acham assim tão especiais – ou carentes de atenção – ao ponto de agirem de má fé e de usarem quem encontram no caminho como bem entendem, sem olhar a meios (como sugerem as “carradas” de vídeos sobre “como sobreviver a um narcisista”)?
Conclusões do estudo de Nova Iorque:
* O narcisismo tem sido mal compreendido na sua essência
* Os psicopatas exibem elevados níveis de grandiosidade
* O narcisismo não é amor próprio, é uma aversão a si mesmo, mas disfarçada
À primeira vista, reina alguma confusão neste imenso universo, mas a equipa de investigadores da Universidade de Nova Iorque, liderada pela psicóloga Mary Kowalchyk, parece desfazê-la. No estudo publicado em março, na revista Personality and Individual Differences, concluíram que o narcisismo é estimulado pela insegurança e não pelo sentimento grandioso ou inflacionado da identidade. Partiram da definição da Associação de Psiquiatria Americana, que descreve esta perturbação de personalidade como um excesso de amor próprio que se manifesta em sentimentos de grandiosidade e de superioridade, com dois perfis distintos. Num extremo, a baixa autoestima, a ansiedade face aos relacionamentos e hipersensibilidade à crítica, ou “vulnerabilidade narcísica”. No outro, uma autoestima elevada, com sentimentos de enaltecimento próprio e a chamada mania das grandezas, ou “grandiosidade narcísica”.
Na prática, ambos esperam ser admirados e tratados como pessoas especiais e complicam a vida a quem está ao seu lado, por exemplo, através de cenas de ciúmes com quem têm relacionamentos próximos, mas as razões e os comportamentos que exibem são substancialmente diferentes. Enquanto os “vulneráveis” o fazem para compensar inseguranças ligadas a sentimentos de inferioridade, por precisarem de ser validados e, desse modo, regularem as suas emoções, os “grandiosos” julgam-se genuinamente superiores e tendem a manipular os outros a fim de obterem poder e estatuto, o que os aproxima dos psicopatas. Mas já lá vamos.
A “Doença do Eu”
A meta do estudo consistiu em apurar qual destes dois perfis – ou subtipos – correspondia mais fielmente a esta perturbação da personalidade. Construíram uma escala para avaliar a projeção de uma imagem de si elevada, quando se está inseguro (FLEX), e outras que mediam a auto-estima, a desejabilidade social e a psicopatia numa amostra de 270 adultos com uma média de idades a rondar os 20 anos. Os resultados indicaram uma forte correlação entre narcisismo – subtipo “vulnerabilidade narcísica” – mas não com a psicopatia, presente no subtipo da “grandiosidade narcísica”. Estes, em contraste com os primeiros, apresentaram baixas pontuações na medida da culpa (dilemas morais).
Os narcisistas genuínos são pessoas inseguras que exibem comportamentos autocentrados para camuflarem a má conta em que se têm e obterem desejabilidade social, o que leva os outros a afastar-se deles e, paradoxalmente, que contribui para agravar o problema que pretendiam esconder e superar. Ficam num vazio existencial, à semelhança do mito grego de Narciso, o jovem que fica refém do seu reflexo no lago. No século XXI, o espelho parece estar nas redes sociais, onde passam uma imagem – ou representação – de si mais bem-sucedida ou inflacionada daquela que sentem ser a sua (bem inferior) na vida real.
Amor próprio ou aversão a si?
Partindo das conclusões deste estudo, de que falamos então, quando falamos de narcisistas, pensando em figuras carismáticas rotuladas com esse termo e quem foi atribuída uma aura omnipotente e maléfica? “O termo ‘narcisismo’ remete para a capacidade de gostarmos de nós próprios e que nos permite estar com os outros numa relação de alteridade, ou indiferenciados e em constante frustração”, afirma a psicanalista Ana Teresa Sanganha.
Esta história começa após o nascimento, em que o bebé se sente no centro do mundo, e continua nos primeiros cinco anos de vida, altura em que, se tudo correr bem com os cuidadores, alcança “um self integrado, em que consegue distinguir um outro para além de si mesmo”, ou do seu umbigo. A “ferida narcísica” acontece quando as figuras de referência falham na expressão de afeto e não reconhecem a capacidade de a criança gostar de si mesma, o que tem implicações na sua vida adulta.
“Quanto menos amados e reconhecidos forem, menor será a capacidade de gostarem de si próprios e de lidarem com a possibilidade da existência do outro.” Dependendo do grau do dano, ele tende a assumir a forma de um simples traço ou de uma perturbação grave de personalidade narcísica. No limite, pode culminar no chamado “narcisismo perverso”.
Grandiosidade: na fronteira da psicopatia
Neste campo, é oportuno mencionar as investigações realizadas nos últimos anos sobre a “tríade negra da personalidade”, que inclui os traços do narcisismo, maquiavelismo e psicopatia, tão presente nas esferas social e laboral, marcadas por um clima altamente competitivo, que premeia a lógica do “número um” e, muitas vezes, a qualquer custo, que interdita a possibilidade de colocar-se nos sapatos, ou na pele, do outro.
“Só pode haver empatia quando se reconhece o outro, e não um prolongamento de nós próprios, como o bebé, no início da vida”, prossegue Ana Teresa Sanganha. Quem fica refém dessa fase infantil excede-se em auto-elogios e deixa os outros desconfortáveis e com a sensação de não serem vistos nem ouvidos. O fenómeno é tão visível nas situações face-a-face como – sobretudo agora, que estamos imersos no digital – nas redes sociais, terreno fértil para comportamentos de auto-promoção sem considerar o outro e, mais grave que isso, um espaço onde se dá vazão “à agressividade, à raiva, à omnipotência e ao ódio”, nos conteúdos e nos comentários, anónimos ou de gente conhecida.
“O perverso narcísico é o mais assustador, pelo seu mecanismo de funcionamento, muito básico, mas destrutivo”, assinala ainda, que vão “desde a pequena inveja entre colegas de trabalho às tentativas conscientes de denegrir, sabotar e destruir o outro”. Aqui, e como sugerem os resultados do estudo nova-iorquino, estamos longe do narcisismo genuíno – até pela ausência de culpa – e cruzamos a fronteira da psicopatia (um dos elementos da “tríade negra”).
De novo, a palavra à psicanalista, usando o exemplo de Adolf Hitler: “Um indivíduo invejoso, que não aguenta a existência do outro, diferente dele, e monta um plano para o aniquilar”. Neste patamar, não há remédio: “A cura só é possível através do amor e este só é possível com alteridade.”
Nem com eles, nem sem eles
Mais do que rotular ou procurar receitas para lidar com questões de ego – o nosso ou o dos outros – importa ter presente o seguinte, nas interações quotidianas:
- Embarcar no registo “o meu é melhor que o teu” é algo a evitar por pressupor que um dos lados sairá “vencedor” e o outro “derrotado” (ou rejeitado)
- O jogo das aparências existe e permanece atual por algum motivo, mas é uma estratégia que tende a falhar e a deitar por terra as melhores expetativas
- Excesso de foco “no seu melhor” ou no registo “vítima / vilão” são duas faces de um filme que pode ser editado com treino da neutralidade e da empatia