“A generalidade das pessoas tem alguma noção de que há crianças a passar pior do que outras, mas não havia até agora dados concretos”, sublinha Susana Peralta, professora da Nova School of Business and Economics (Nova SBE) e coautora do relatório “Crianças em Portugal e ensino a distância: um retrato”, que acaba de ser divulgado publicamente, além de enviado para a tutela e para o Parlamento. “Daí termos decidido pôr números nisto, para todos perceberem melhor o que se está a passar e o que é preciso fazer”.
Em causa está aquilo que, no início do verão passado, o governo fez aprovar, em Conselho de Ministros, em que se definia que o ensino deveria ser “preferencialmente, presencial” – e que, caso fosse preciso passar a ser efetuado à distância, deveria aplicar um regime diferenciado em determinados casos. As exceções definidas são as crianças com necessidade educativas especiais e as que estão assinaladas como sendo de risco pelas comissões de proteção de crianças e jovens. Mas também incluía aquelas em que se comprove que não têm condições para prosseguir o ensino em casa. “Como estes casos são mais difusos de definir, e acabaram por ficar de fora, o que decidimos fazer foi ir ver como vive a generalidade das crianças. E o retrato não é nada animador”, frisa ainda aquela professora universitária.
O que Susana Peralta e a sua equipa fizeram foi analisar os dados do Inquérito às Condições de Vida e do Rendimento, lançados pelo INE e referentes aos anos de 2018 e 2019, e caracterizar as condições habitacionais e alimentares das crianças – para depois cruzar essa informação com dados do próprio ministério da Educação, e assim pôr em evidencia “as várias situações de carência económica dos alunos e como as mesmas se repercutem no sucesso escolar”
Os números falam por si: um quarto das crianças portuguesas, a frequentar a escola até ao 9º ano de escolaridade, vivem em casas com problemas de humidade; 26 por cento com telhados que deixam passar água, 13 por cento sem a casa devidamente aquecida. Além disso, 15 por cento reportam a casos de habitações sobrelotadas e há ainda 6 por cento de casos que reportam crimes na vizinhança. “Há coisas inimagináveis num país que se diz desenvolvido, em pleno século XXI”, desabafa ainda a investigadora, a propósito do facto de, no Algarve, 2,5 por cento viver em habitações sem duche. “Surpreendeu-nos imenso a privação infantil no Sul do País”.
Mas há mais: há quem sinta fome, mas não coma porque o agregado familiar não tem dinheiro (3,1%), valor que sobe para os seis a sete por cento nos casos de famílias monoparentais e famílias numerosas, respetivamente. Além disto tudo, salienta ainda Susana Peralta, é também muito alta a percentagem de filhos de mães sem ensino superior – indicador usado internacionalmente para estimar o sucesso na escolarização das crianças. “Só 20 por cento das crianças portuguesas contam com esse recurso para as ajudar no ensino à distância”, frisa.
“Fomos ainda ver quantas crianças beneficiam do serviço da ação social escolar e detetámos uma mancha escura em Trás-os-Montes, onde são mais de 80 por cento. O que quer dizer que uma esmagadora maioria destas crianças vão ter escola em casa com muito mais dificuldades do que outros. Se já havia uma enorme diferença nos resultados escolares entre os mais e os menos favorecidos, imagine-se agora, com a crise instalada…só pode ter piorado”. Mais uma razão, insiste Susana Peralta, para se fazer cumprir o que está na resolução do Conselho de Ministros. “Se não se pode fazer mais nada, então pelo menos os mais desfavorecidos têm de voltar para a escola”.