São nove e meia quando chegamos a Alvalade e o bairro está a acordar para o novo confinamento, dez meses depois do início da pandemia. Um despertar que em quase nada se distingue da véspera, pelo menos para a maioria das pessoas que anda por aqui.
Há, no entanto, uma diferença que salta à vista, agora que nos habituámos às ruas cheias de esplanadas – não existem cadeiras onde aproveitar este sol matinal e as temperaturas mais amenas do que nos dias anteriores. Mas não falta café, só em take away, à porta de pastelarias e até pode ser acompanhado de um bolo ou outra coisa qualquer digna desta hora. É então que as conversas se soltam, de máscaras amparadas pelo queixo, enquanto se bebe a bica matinal. “Isto não vai dar em nada…” Ou, pelo menos, irá dar outra vez cabelos compridos e descolorados.
Andando pelas ruas, vemos flores à venda numa porta aberta, roupa a ser tratada numa lavandaria, eletrodomésticos para comprar, mercearias com os produtos expostos à passagem, a Padaria Portuguesa sem restrições de entrada. A paróquia de São João de Brito a chamar fiéis, com um dispensador de gel à entrada, mas com apenas três pessoas a rezar nos bancos, sozinhas, num silêncio descomunal.
Dentes tratados, mesmo atrás das máscaras
À primeira vista parece que a Real Biuti, uma clínica dentária, não está a funcionar. Pelo menos é isso que lemos na porta envidraçada. Mas, depois de tocarmos à campainha, aparece a assistente Sofia Fonseca, 27 anos, equipada a meio termo, porque ainda não há doentes na sala de espera. Desta vez os dentistas podem trabalhar sem ser apenas para atender urgências e, nesta clínica, passam declarações para que as pessoas possam tratar-se sem serem barradas pelas autoridades – esta é, aliás, uma das 52 exceções ao novo confinamento que se prevê dure pelo menos um mês. “Percebeu-se que os dentistas estão mais protegidos do que a maioria e que são raros os casos de contágio em consultório”, diz-nos esta profissional que, apesar da idade, já aqui trabalha há quatro anos.
A esta hora, Sofia não tem tempo para ir comer uma delícia conventual ao Doces Santa Clara. Mesmo sabendo que é Nuno Pais, 53 anos, um dos donos, a confecioná-las diariamente, com base em receitas tradicionais.
Mas agora, ele está à porta, junto à mesa que pôs à entrada do pequeno café para não deixar os clientes entrar e sente-se mais tranquilo do que em março. Nessa altura, teve de parar durante três semanas e ainda se lembra bem do bairro “deserto de carros e pessoas”. Foi essa a mesma expressão usada por Carlos Trigueiras, 63 anos, que trabalha n’ A Banca, mesmo aqui ao lado, e nunca ficou em casa, porque a sua tarefa implica atendimento ao público e não permite teletrabalho. “Da primeira vez, não teve nada a ver com o que se está a passar hoje”, remata, enquanto despacha uma bica neste que é o seu poiso habitual. “Dá para tirar um café?”, pergunta outra cliente, que depois nem sabe bem o que fazer às mãos para comer a léria que pediu a acompanhar esta bebida, servida em copo de plástico.
A ótica que abre mais horas do que antes do confinamento
Mais à frente, é o corrupio de entradas e saídas na Mariazinha, mesmo ao lado da loja de roupa Teresa Silveira – fechada – e do cabeleireiro Augustas – também fechado. António Dias, 68 anos, sai da loja de chás, cafés e produtos a granel, contente com o seu pacotinho de rebuçados, e parte para o mercado para as compras que lhe permitem cozinhar as refeições do dia. Amanhã voltará – “vivo mesmo ali em cima”, aponta na direção da igreja. Na fila, estão várias pessoas da sua idade, ou pelo menos com cabelos brancos, grisalhos no máximo.
Quem assiste a isto tudo de bancada são os taxistas que, na ausência de clientes, se juntam num pequeno aglomerado perto dos seus carros. Vão comentando, agasalhados, o confinamento por entre uma série de cigarros.
A avenida da Igreja tem um lado ao sol e outro à sombra, mas no sombrio há mais gente a circular porque existem mais lojas abertas. Não é o caso de duas ourivesarias. Nem da barbearia Nova Lisboa, com a montra igual à de ontem, mas vazia de homens, que nos últimos dias encheram o chão da sala de cabelos, com receio de não poderem cortá-los nos próximos tempos. A gadelhas de maio ainda estão na memória de muitos.
A loja de ótica que fica mesmo ao lado tem duas funcionárias lá dentro, mas nenhum cliente. Desta vez, não foi ninguém para lay off, explicam-nos, e as lojas mantiveram-se todas abertas, com horário normal, sem recorrer à centralização por que optaram em março. Ironicamente, até funcionam mais tempo, porque já não têm de fechar à uma da tarde ao sábado, como tem acontecido aos fins de semana desde novembro.
“Uma coisa é estar aberto, outra é ter clientes”
Olga Castro, 46 anos, trabalha na tentadora Leonidas desde o início de 2019. Apesar de só ter aberto este pequeno espaço há um hora, já consegue esmiuçar as diferenças do primeiro para o segundo confinamento: “Dantes, os clientes nem entravam. Pediam o café à porta e espreitavam para escolher os bombons. Agora, deixamos as pessoas virem ao balcão, mas fechámos o acesso à parte da sala onde havia mesas e recolhemos a esplanada.” Vão experimentar assim, a ver como funciona, apesar de já estar a temer pelo fraco movimento da avenida.
É por essa razão que António Ferreira, 54 anos, não pensa abrir a sua drogaria, que aqui existe há mais de sete décadas, apesar de saber que este negócio cabe numa das alíneas de exceção do decreto-lei que instaura o confinamento que hoje começa. Está a aproveitar para desmontar as montras do Natal e embelezá-las com cartazes que promovem os produtos de higiene que vende. “Uma coisa é estar aberto, outra é ter clientes”, lamenta-se. Ainda tem bem frescas as memórias dos 45 dias em que não faturou nem um cêntimo.
Não diríamos que hoje o movimento diminuiu. Diríamos que está diferente. Por exemplo, nota-se mais gente nos bancos da rua, a ler o jornal ou a comer, e mais gente na fila para a Riviera, pois torna-se difícil resistir a uma apetitosa lista de comida pronta a levar. À medida que a manhã avança, saem os miúdos da escola e é vê-los a circular em pequenos grupos, tentando contornar a contrariedade de os restaurantes estarem fechados.
Foi na fila de uma das afamadas churrasqueiras deste bairro que encontramos quatro amigos, acabados de sair das aulas do 9º ano da Escola Eugénio dos Santos. Nunca vieram aqui buscar comida, mas hoje decidiram inovar. E para não estarem sem máscara na rua, aproveitam a proximidade da casa de um deles para irem para lá comer o frango e os filetes que compraram para o almoço, enquanto não começa a aula da tarde. Estão mais ou menos todos de acordo em dizerem-se contra a aulas presenciais, embora confessem que no ano passado, durante o primeiro confinamento, não aprenderam nada na escola online e que este ano, sendo de exame, seria mais difícil estarem nesse impasse letivo. De saco na mão, seguem, divertidos, avenida acima.
A única autoridade são os fiscais da EMEL
Estranhamos a ausência total de polícias por aqui, mas vemos a EMEL bem ativa e atenta aos desvarios de estacionamento. Se há imagem de marca desta avenida, ela faz-se de carros parados em segunda fila e hoje, primeiro dia do take II de confinamento, eles estão cá na mesma. Mas agora misturam-se com as motas e bicicletas das empresas que entregam comida em casa, que entram em rodopio assim que cheira a almoço.
Também vemos muitos cães pela trela, em passeios higiénicos com os donos que se distraem a olhar para as montras fechadas, onde se anunciam saldos até 70% que não chegaram para escoar a roupa de inverno, ou para colchões em que não se podem deitar e viagens prometidas pelas agências de viagens, com atividade suspensa.
Isabel Cruz, 87 anos, brinca com os empregados da Nova Bagdad, pastelaria que visita todos os dias, desde a década de 1950, quando se mudou para o bairro. “Não vou beber o café em pé”, brama, ao mesmo tempo que o faz, que remédio. No seu saco vermelho, já leva duas revistas de televisão para se distrair e o pão para o dia. Não tarda, voltará a sair para ir buscar o salmão que encomendou para o almoço e ainda tem a renovação do cartão de cidadão agendada para a tarde. “Em março, os meus filhos não me deixavam sair de casa. Sou de alto risco”, lamenta. Mas agora, ninguém a prende em casa, nem o neto adolescente, a quem tem de deitar um olho enquanto o filho vai trabalhar. “Conheço toda a gente e gosto muito de me meter com as pessoas.”