Se sonhar acordado pode conduzir a grandes descobertas, não é menos verdade que sonhar enquanto dormimos tem uma função determinante na maneira como vivemos enquanto estamos despertos. Quando temos problemas de sono e não sonhamos (é preciso medir a atividade cerebral para testá-lo, na medida em que podemos sonhar e não nos lembrarmos, basta que não acordemos durante uma das várias fases R.E.M., de movimentos oculares rápidos), tal pode comprometer o desempenho cerebral: tempos de reação mais lentos, dificuldades de concentração, no raciocínio e na realização de tarefas complexas, além de uma maior probabilidade de cometer erros e esquecimentos frequentes.
Até aqui, os neurocientistas davam como certa a chamada teoria da ativação-síntese, ou da função reguladora do sonho no plano biológico, porque permite consolidar aprendizagens, processar emoções e memórias e reciclar estímulos acumulados (libertar espaço no disco, em linguagem informática).
O que um novo estudo revela agora é que os sonhos noturnos têm a função de combater a adaptação excessiva do cérebro quando é exposto às muitas solicitações quotidianas diurnas. A conclusão é do investigador americano Erik Hoel, autor de um artigo científico publicado na revista New Scientist, em novembro. Segundo o neurocientista da Tufts University, em Massachusetts, as redes neurais artificiais aprendem detalhes relevantes, mas são os irrelevantes que trocam as voltas à aprendizagem dos sistemas de inteligência artificial (IA).
Como se ultrapassa esta inconveniência em ciência computacional? O problema dá pelo nome de “overfitting”, ou sobreajustamento, que consiste na dificuldade em generalizar o que se aprendeu a partir de situações repetitivas em novos contextos. Hoel admite que o cérebro humano consegue contornar este obstáculo – o do sobreajustamento – e aumentar o processo da generalização através da atividade onírica, que acompanha a evolução da espécie. Estaremos diante de uma nova teoria dos sonhos?
Ficcionar para superar
Até recentemente, estudos em neurobiologia dos sonhos, do psiquiatra e investigador americano Allan Hobson, em parceria com Karl Friston, mostraram que sonhar é essencial para a nossa sobrevivência biológica, não apenas para consolidar aprendizagens, mas também para simular mecanismos de defesa em situações que o cérebro encara como potencialmente ameaçadoras.
Ao construir ficções do real, um pouco como sucede nos videojogos, o cérebro ensaia respostas alternativas para novas questões e preocupações sem ficar bloqueado
Se andarmos mais preocupados, tivermos pela frente desafios exigentes ou estivermos sujeitos a experiências stressantes durante a vigília, as alterações hormonais e neuronais vão connosco para a cama e manifestam-se em dificuldades em dormir, mas também em sonhos mais vívidos e, não raras vezes, em pesadelos.
De resto, abundam os estudos como o publicado na revista Frontiers in Psychology, a evidenciar que boa parte dos “sonhos maus” reportados nos últimos meses se relacionavam com os efeitos psicológicos e sociais da pandemia (elevadas doses de incerteza, medo, ansiedade e depressão associadas às medidas de distanciamento social e de isolamento).
O que pode estar a passar-se durante o sonho parece ser algo mais profundo que vai além da consolidação daquilo que se aprendeu durante o dia: ao construir ficções do real, um pouco como sucede nos videojogos, o cérebro ensaia respostas alternativas para novas questões e preocupações sem ficar bloqueado ou refém de um estado de alerta que ativa a resposta de ataque ou fuga e pode até paralisar.
A “boa” desordem do cérebro sonhador
À luz da teoria de Hoel, os sonhos são um mecanismo biológico que promove a desejada generalização nas estruturas neuronais, pondo fim ao referido sobreajustamento e tornando possível, não apenas aprender e memorizar, mas também generalizar de forma adequada. A hipótese do cérebro sobredimensionado parece, assim, ir ao encontro das investigações neurocientíficas sobre a forma como se processa a aprendizagem profunda, que implica um grau de complexidade crescente.
Embora estejamos já longe dos tempos em que a análise do conteúdo dos sonhos fascinava psicanalistas, realizadores de cinema, pintores surrealistas e o cidadão comum, não será de descartar por completo as teorias freudianas, que definiam o sonho como a estrada real para o inconsciente e já vamos perceber porquê.
Na era das ressonâncias magnéticas e dos algoritmos, é possível compreender um pouco melhor o que acontece nas redes neuronais – dos sistemas artificiais e humanos, em que os de IA se baseiam – e como se processa a aprendizagem profunda, o “deep learning”: basta pensar nos assistentes pessoais do telemóvel ou nos programas e aplicações tecnológicas de uso frequente, que melhoram o seu desempenho quanto maior o número de utilizadores e de utilizações.
Melhoram, mas não captam todas as nuances de que a comunicação humana é capaz, as ambiguidades e os implícitos interpretativos que emperram a fluidez conseguida, pelo menos ao nível das camadas superficiais (e previsíveis) do programa que se aprendeu (seja uma língua, um desporto ou outra área que exija treino de competências e mestria).
Entre o artificial e o real
O docente e investigador José Saias, do Departamento de Informática da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora, estuda o uso de modelos de inteligência artificial (IA) inspirados nos neurónios e sinapses do cérebro humano, com a aplicação de redes neuronais artificiais em tarefas de aprendizagem automática a partir de texto.
Sobre o estudo em questão, importa lembrar que “as redes neuronais profundas (Deep Neural Networks ou DNNs) envolvem modelos mais complexos, formados por múltiplas camadas”, as mesmas que são sujeitas ao “overfitting”, ou seja, a “uma dependência excessiva do conjunto de treino”.
O que é que isto quer dizer? “As redes neuronais têm um desempenho elevado a processar casos semelhantes aos treinados, mas comportam-se pior em casos diferentes dos conhecidos, ou seja, o sistema lida bem com o que já conhece mas não consegue generalizar.” Evitar este sobreajustamento passa por “encontrar um conjunto de treino abrangente e representativo” e “controlar a grau de ajuste da rede para que não fique demasiado presa aos casos conhecidos”.
Admitindo um paralelismo entre a captação da realidade através de estímulos em “machine learning” e a experiência humana durante a vigília, “uma das formas de controlar o grau de ajuste consiste em “injetar variações aleatórias dos estímulos, ou “ruído”, que parece ser o que acontece nos sonhos. Será mesmo assim? “É uma teoria plausível, mas que escapa à Informática”, observa o investigador português.
Ver a floresta a partir da árvore
Se nos questionarmos acerca das razões que nos levam a ficar seduzidos por eventos, filmes, livros e jogos que apresentam discrepâncias e nos induzem em erro, talvez nos demos conta da função significativa que eles têm no nosso desenvolvimento cognitivo e emocional (e toda a aprendizagem o é, emocional).
As redes de inteligência artificial e as do cérebro humano não iriam tão longe sem a indispensável presença de estímulos disruptivos, quais “bugs” na engrenagem. Afinal, são eles que estimulam a capacidade para incorporá-los no que já se aprendeu, mas que por ser tão especializado, nem sempre abarca a visão do todo.
Conclusão: sonhar é preciso, já que uma dose de irrealidade q.b. pode ser boa conselheira ou mentora na hora de resolver as mais insondáveis e fascinantes questões da existência.