São 10 da manhã e na Nova Medical School, a funcionar num imponente edifício do século XIX, em pleno Campo Mártires da Pátria, em Lisboa, já começou a aula sobre fibras alimentares para alunos dos cursos de Ciências da Nutrição e Medicina. E quando se pensa em aulas, numa faculdade, ninguém espera encontrar as alunas (aqui não há elementos do sexo masculino) de touca na cabeça, avental plástico e proteções nos sapatos. Muito menos, de faca em riste, entre tachos, a cortar legumes para um estufado.
Só que, no primeiro laboratório de investigação alimentar numa escola médica, inspirado no que existe na Harvard Medical School e noutras universidades internacionais, inaugurado dias antes de a pandemia mandar professores e alunos para casa, o ambiente é sempre este.
O desafio foi apresentado assim que as oito alunas entraram no laboratório, pelas nove da manhã. Só tiveram tempo para guardar as coisas no cacifo, equiparem-se de acordo com as normas de segurança alimentar, e partir para a cozinha. Na verdade, tratam-se de quatro ilhas (mais a do professor), impecavelmente equipadas, com o patrocínio de uma marca de eletrodomésticos topo de gama. Os ingredientes para as receitas indicadas pelas professoras Diana Teixeira e Inês Mota, da cadeira de Gastrotecnia, já estão em cima das bancadas, nas doses certas, para que cada dupla de alunas dê forma a uma sopa de cogumelos e couve roxa, a um estufado de legumes e castanhas que há de acompanhar uma posta de garoupa cozida a vapor com ervas aromáticas.
“Coma mais fibra”
“Coma mais fibra”, é um conselho nutricional vago, ninguém duvida. Daí que se queira, com estes workshops, que as futuras profissionais saibam direcionar melhor as suas indicações em contexto de consulta. Ninguém precisa de ser chefe ou sequer de ter formação em culinária, mas há mínimos que devem estar cumpridos, como saber ensinar a melhor confecionar para preservar os nutrientes.
“Na Nova Medical School tem vindo a aumentar a componente de nutrição na formação médica”, explica Conceição Calhau, coordenadora da licenciatura em Ciências da Nutrição, indicando que faltava este passo para apurar o ensino na preparação dos alimentos. “Não basta dizer para um doente comer mais peixe com a intenção de minimizar o risco cardiovascular, pois, se ele for frito, os benefícios associados perdem-se e ainda podem aumentar a formação de compostos carcinogénicos”, exemplifica a professora.
Neste caso, os potenciais doentes são obesos ou pré-obesos e a intenção, com estas receitas, é a de estimular o consumo de alimentos que normalmente não constam do cardápio destes grupos da população, como hortícolas da época, cereais integrais, fruta, castanhas, cogumelos, frutos secos e espargos. “Estes produtos não só ajudam a controlar o peso, como promovem a saciedade, melhoram a resposta glicémica da refeição e a função intestinal”, lembra Diana Teixeira.
A importância do padrão mediterrânico
Hoje também se vai falar muito de Dieta Mediterrânica, porque acaba de ser publicado um estudo que atesta que indivíduos obesos tiveram melhoria metabólica e de peso, depois de oito semanas a alimentarem-se de acordo com este padrão, por oposição a outro tipo de dieta. Conclusão? A qualidade dos alimentos interessa mais do que a quantidade calórica.
A qualidade também se prende com a presença de fitoquímicos em produtos que são coloridos, por norma hortícolas ou fruta, coisa que abunda nas bancadas deste laboratório universitário. Quase tudo da época: cenouras, pimentos, tomate cherry, espargos, cogumelos, castanhas, couve roxa, aipo e romã.
Como já se disse, a forma de cozinhar os alimentos é quase tão importante como a sua qualidade nutricional. Facilmente caem por terra os benefícios retirados de determinado produto se a maneira de o confecionar não for a mais adequada. Por exemplo, aqui privilegiam-se os pratos de panela, mas também o vapor, quer para a garoupa em cama de legumes, embrulhada em papel de estanho, quer para cozer a couve roxa da sopa. “Alguns benefícios dos legumes podem perder-se quando a temperatura elevada se mantém por muito tempo”, ensina a nutricionista Diana Teixeira.
Se há ingrediente intencionalmente em falta neste laboratório é o sal. Em vez disso, encontra-se paprika, pimenta, alho em pó, noz moscada e tomilho e promove-se a combinação de sabores para dispensar a adição de sódio – uma indicação típica para quem sofre de hipertensão. O azeite, embora seja uma gordura boa e desejável à mesa, também tem a sua presença controlada a uma colher de sopa.
De repente, ouve-se uma campainha, sinal de que o peixe, na vaporeira. está pronto. E o seu aroma, meio cítrico, meio floral, sente-se mesmo que a máscara tape o nariz. Entretanto, enquanto esperam que a comida esteja toda a postos para ir para a mesa, as alunas inundam as duas professoras com dúvidas práticas. Rapidamente essas dúvidas são remetidas para quando estiverem a comer, pois agora há que empratar o mais apetitosamente possível, apesar de ainda nem ser meio-dia. Ninguém deixa de fotografar os pratos, que estão mesmo com bom ar e ar saudável.
Refeição exemplar
A professora Inês Mota já pôs a mesa para todas. Mas Inês Duarte, de 21 anos, sua aluna ainda tem tempo para elogiar estas aulas práticas, porque a teoria, “a química por trás dos métodos de confeção”, já a aprendeu no ano passado. Ainda por cima, ela cozinha pouco e agradece qualquer dica para minimizar essa sua ignorância. Já Mariana Mota, 24 anos, aluna do último ano de medicina, está mesmo satisfeita com este workshop, pois apesar de cozinhar em sua casa, porque é da Madeira e vive sozinha desde que se mudou para Lisboa, constatou que faz muita coisa errada. “Não quero apenas tratar doenças, quero olhar para o doente como um todo e este tipo de iniciativa, além de serem cultura geral, ajuda na prevenção primária.”
O último gesto, antes da refeição, foi pousar um jarro de água em cada uma das mesas. Não há outra bebida, claro. Já sentadas, tiram as máscaras e mastigam, ao mesmo tempo que ouvem Diana Teixeira dissertar sobre a importância de o fazer. “É a mastigação que informa o cérebro de que estamos a comer para nos sentirmos saciados. Devemos dar esta indicação, mesmo quando não há obesidade.”
Se havia dúvidas em relação à importância de aulas como esta, os resultados de um estudo, publicados em outubro deste ano e que agora estão projetados nesta sala de aula peculiar, indicam que algumas das razões para a fraca adesão dos portugueses à dieta mediterrânica é não saberem confecionar para ficar saboroso. “Agora”, pergunta Diana, “a sopa estava saborosa? Foi custosa de fazer?” Todas anuíram para a primeira questão e negaram a segunda.
Aulas também para doentes
E já que a Ciência está à mesa, neste momento, Inês Mota aproveita para fazer as contas da refeição que todas provaram: estão em causa 632 calorias, 20 gramas de lípidos, 75 gramas de hidratos de carbono, 20 gramas de proteína e 18 gramas de fibra (72% do aporte diário recomendado). Além disso, o índice glicémico é de apenas 41, o que constitui um valor ótimo para controlo da insulina.
“Dúvidas?”, indaga Diana Teixeira para uma plateia que já voltou a pôr as máscaras, uma vez que os talheres se encontram arrumados. Como ninguém a interpelou mais, levantaram-se para arrumar a loiça na máquina, como em casa. Com a ajuda de todas, o laboratório ficará num brinquinho, pronto para outra.
É que, além de aulas destinadas a alunos, também irão desenvolver ensaios clínicos na área da alimentação e apostar em formações. Nas ilhas ao estilo Masterchef, tanto poderão sentar-se doentes, para aprenderem a preparar refeições direcionadas a situações específicas – como diabetes, obesidade ou doença inflamatória intestinal –, como crianças, envolvendo-as na preparação de alimentação mediterrânica.