Quando uma fantasia nostálgica é suficientemente tentadora para voltarmos ao sítio onde já fomos felizes, tudo pode acontecer. “E se…?” Este é o mote de Run, ficção escrita e produzida por Vicky Jones, juntamente com Phoebe Waller-Bridge, para a HBO, sobre o reencontro de Ruby (Merritt Wever) e Billy (Domhnall Gleeson), que tinham feito um pacto 17 anos antes: se um deles enviasse uma mensagem com a palavra “corre” (run, em inglês) e o outro respondesse o mesmo, apanhariam juntos o primeiro comboio disponível na Grand Central Station, em Nova Iorque, rumo à aventura. Ao longo de sete episódios, vão sendo revelados os motivos que os levaram a partir e as surpresas da viagem: eles são os mesmos, mas não são os mesmos. Tinha razão o filósofo Heraclito, há dois milénios: não é possível um homem banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio, porque já não é o mesmo rio nem o mesmo homem.
Revisitar o passado é um risco que se corre, por gosto ou necessidade, seja para aplacar um mal-estar indefinido, resolver uma história suspensa ou testar se tudo não passou de uma ilusão. Renunciar também é legítimo, por se tratar de uma paixão inesquecível, a repetir apenas na memória, como no clássico Casablanca (1942), imortalizado pela dupla Humphrey Bogart e Ingrid Bergman: “Teremos sempre Paris.” Se as coisas fundamentais ganham relevância com a passagem do tempo (As Time Goes By, cantava o velho Sam), valerá a pena abrir a caixa de Pandora e ver o que acontece?
Fogo que arde
(e às vezes queima)
No início dos anos 1990, a psicóloga americana Nancy Kalish, da Universidade da Califórnia, realizou um estudo numa amostra de 1001 pessoas que se tinham envolvido (entre cinco e 75 anos depois) com quem já tinham sido felizes. Em mais de metade dos casos (55%), tratava-se do primeiro amor da adolescência e 37% ocorreram entre os 40 e os 50 anos. A investigadora e autora de Lost & Found Lovers descobriu que 72% destas pessoas estavam ainda juntas com o antigo amor e que o reencontro foi descrito por elas como o mais intenso das suas vidas. A ausência de compromissos, a dificuldade em iniciar relacionamentos com estranhos à medida que os anos passam e a maturidade foram algumas das razões apontadas para o sucesso da relação.
Um intenso despertar
O que faz dos primeiros amores candidatos de eleição a reencontros intensos é a rapidez da ignição: a química cerebral não esquece. Este atalho, que tão bem conhece quem volta a fumar ou a andar de bicicleta muito tempo depois, leva muitos a saltarem a etapa inicial de conhecer e de dar-se a conhecer.
Em tempos de modernidade líquida (expressão cunhada pelo filósofo polaco Zygmunt Bauman), marcada pela volatilidade e incerteza – também nos relacionamentos –, localizar e reacender um romance antigo é fácil: temos sempre o email e as redes sociais. Ao replicar o estudo, em 2005, Kalish descobriu que 60% dos “amores perdidos” eram casados, mas não conseguiram evitar que a troca de correspondência eletrónica escalasse para o registo presencial. No final, porém, apenas 0,4% se divorciaram para ficar com a antiga paixão: o princípio da realidade prevaleceu sobre o amor romântico. No seu site, a docente (falecida em julho do ano passado) aconselhou os comprometidos a resistirem ao impulso de irem à procura da antiga ligação, sob pena de causarem estragos na atual.
O que faz dos primeiros amores candidatos de eleição a reencontros intensos é a rapidez da ignição: a química cerebral não esquece. Este atalho leva muitos a saltarem a etapa inicial de conhecer e de dar-se a conhecer
Arriscar e petiscar é, contudo, uma incógnita. À cautela, há quem siga a máxima “se não sabes o que fazer, não faças nada” e se abstenha de passar à prática. A psicóloga clínica e terapeuta de casal Luana Cunha Ferreira salienta que a fantasia estimula o desejo e a ideia de possibilidade, mas não tem de ser agida: “Não é por acaso que muitos se ficam pela fantasia, mesmo na era do Facebook, até porque se a expectativa for muita, o embate pode ser violento.” Em qualquer dos casos, o impacto é grande e deve-se ao fenómeno cognitivo conhecido por “enviesamento positivo”: tendemos a recordar e a enaltecer o que correu bem e a deixar de fora as partes negativas que, em última análise, terão contribuído para o fim. Dito isto, ir a jogo outra vez pode ser libertador para alguns: “Confrontam-se com uma nova realidade, fecham aquele capítulo e seguem em frente”, explica. Outros reencontram-se, mas não da forma que esperavam: “Descobrem que foram felizes naquela relação por despertar potencialidades suas que estavam adormecidas, e não pela outra pessoa.”
Epifanias e sensatez
O tema do retorno a um romance dos tempos de escola marca presença na sabedoria popular. “O espinafre e o amor juvenil não devem ser reaquecidos” coexiste com o provérbio “o amor juvenil não apanha ferrugem”, exemplifica o psicoterapeuta Wolfgang Lind, que estudou e vive em Portugal e tem uma tese de doutoramento sobre casais biculturais. “É preciso ser muito claro sobre o que motiva o reencontro, se a simples curiosidade ou algo mais; nesse caso, e por ser tão fácil e rápido envolver-se de novo, é aconselhável arrumar a casa antes e evitar os danos associados a um relacionamento extraconjugal.”
Trazer para o presente as alegrias do primeiro beijo e das aventuras que se seguiram, a par das velhas mágoas, permite apurar se a ligação tem pernas para andar
Se o fim do romance juvenil se deveu a fatores externos e ficou, portanto, em aberto, a probabilidade de revisitá-lo é grande. Lind menciona o caso de uma paciente com 70 anos e em plena crise conjugal, que nunca esqueceu um australiano com quem não chegou a viver, dadas as circunstâncias de vida à data. Um dia tentou o contacto com ele. Descobriu que tinha falecido, nunca chegara a casar-se e deixou um caixote selado com o nome dela. “Isto ajudou-a a fazer o luto e a guardar boas lembranças, mantendo-se no casamento”, recorda o psicólogo.
Em momentos de encruzilhada, acrescenta, é útil fazer um exame de consciência com base em três questões simples: “Porque me separei na altura? O que é que este amor me trouxe? E o que mais custou na despedida?” Trazer para o presente as alegrias do primeiro beijo, da primeira noite das aventuras que se seguiram, a par das velhas mágoas, permite apurar se a ligação tem pernas para andar e lugar para os incontornáveis ajustes.
(Re)construir a intimidade
Mesmo sabendo que os amores perfeitos só existem na ficção e que há vida além do primeiro, o grande desafio continua a ser a capacidade de reinventar-se e cumprir um anseio humano: ter alguém com quem contar e que possa caminhar ao nosso lado. “O reencontro com um ‘ex’ ou uma antiga paixão representa o confronto direto com a nossa própria evolução”, assegura o psicólogo e terapeuta de casal Pedro Frazão. Os desencontros, as relações tremidas e as desilusões que chegam ao seu gabinete de consulta revelam angústias ancestrais. “E se tivesse optado pela via deixada para trás, em detrimento da escolha tomada? Seria melhor, mais satisfatório?”
A tentativa de replicar um sentimento experimentado – e idealizado – com quem fez parte da nossa história íntima é “uma forma de se ver ao espelho, perceber o que mudou e o que permaneceu, quem fomos e quem somos”, avança. Romper com a normalidade traz um novo alento mas também ondas de choque: “Tendemos a esquecer que amar alguém e ser amado dá trabalho, exige dispêndio de energia e implica cedências mútuas.”
No século XIX, o existencialista Soren Kierkegaard trouxe à luz uma verdade óbvia: vivemos seguindo em frente, mas só andando para trás podemos compreender a vida. No limite, reviver a vertigem de um tempo em que tudo parecia novo e possível faz-nos sentir vivos para continuar. O escritor italiano Francesco Alberoni afirmou que uma paixão arrebatadora acontece, aos sortudos, uma ou duas vezes na vida. Havendo protagonistas disponíveis para amar e circunstâncias favoráveis, porque não reacender a chama do fogo antigo?
Quando não se esquece: voltar lá ou não?
Antes de tentar a reaproximação com um amor do passado, avalie os seus motivos, as possíveis consequências e a sua capacidade de encaixe
“Reincidentes” famosos
Príncipe Carlos + Lady Camilla P. Bowles:
Trinta e cinco anos depois de se conhecerem, casaram-se (2005) e estão juntos há 15 anos. Após se tornar público o caso extraconjugal entre os dois, ambos optaram pelos respetivos divórcios e trocaram de alianças anos mais tarde
Phil Collins + Orianne Cevey:
O músico conheceu a tradutora numa digressão europeia e o casamento acabou num divórcio que custou a Phil 32 milhões de euros. Oito anos depois, voltaram a ser um casal “profundamente” apaixonado
Richard Burton + Elizabeth Taylor:
Conheceram-se na rodagem de Cleópatra, em 1964. O quinto (e tumultuoso) casamento da diva acabou em divórcio. A renovação de votos não durou um ano. Elizabeth disse à Vanity Fair que Richard foi o grande amor da sua vida
Antes de se envolver com uma antiga paixão…
Deve:
Enviar mensagem simples: “Tenho pensado em ti, se quiseres dar sinal, terei gosto nisso”
Aguardar resposta: não ceder à tentação de enviar várias mensagens é mais sensato
Ir devagar: a última coisa que deseja é pressionar o outro e fazê-lo recuar, se responder imediatamente
Ser discreto(a): falar de momentos bons, da sua situação atual e esclarecer algo, se necessário
Não deve:
Fazer o contacto inicial para o telefone pessoal: opte pelas redes sociais ou o email
Atirar-se de cabeça: a ideia não é assustar a pessoa, mas dar tempo ao tempo
Criar grandes expectativas: respeite aquilo que daí vier sem fazer críticas
Forçar o contacto: o silêncio também é uma resposta, prepare-se para aceitá-la
Fontes: lostlovers.com e Psychology Today