A 3 de dezembro de 2019, Rui Rangel foi expulso da magistratura, numa decisão praticamente inédita do órgão de disciplina dos juízes. Dos onze magistrados judiciais que votaram que lhe fosse aplicada a mais grave sanção disciplinar prevista para os juízes (o Conselho tem 17 membros), só um esteve contra: o juiz Cardoso da Costa deu voto de vencido, por entender que a decisão do processo disciplinar deveria aguardar a decisão do processo penal – onde Rangel continua a ser investigado, no âmbito da chamada Operação Lex, por suspeitas de vender decisões judiciais favoráveis e manter outros negócios lucrativos paralelos à sua carreira de juiz.
Rui Rangel recorreu dessa decisão, tentando anulá-la, mas a demissão foi esta semana confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça: a seção de contencioso decidiu que o juiz vai mesmo ser expulso da carreira e perder os seus rendimentos. O Conselho Superior da Magistratura tinha entendido que a conduta de Rangel – que está sob investigação no processo-crime que viria a dar origem ao processo disciplinar – violara os deveres de prossecução do interesse público (abalando a confiança do público no sistema judicial), de imparcialidade e isenção, e dos deveres de integridade, retidão e probidade, que devem reger as funções de um magistrado judicial. E, agora, o Supremo confirmou: considerou que todo o processo disciplinar era válido e que os factos provados, “pela sua gravidade”, justificavam a pena de expulsão aplicada pelo órgão de disciplina dos juízes.
Mas afinal, que argumentos usou Rui Rangel para tentar não ser expulso da magistratura? No recurso que apresentou a 31 de dezembro do ano passado, o ex-juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa argumentou que “todos os factos” constantes do processo disciplinar tinham origem no processo-crime, ainda em fase de investigação, e que o inspector do Conselho Superior da Magistratura que conduzira o processo disciplinar se tinha limitado a ir beber ao processo-crime emails e informação bancária, sem que fizesse qualquer análise complementar daquele capítulo. Como tal, alegava Rangel, não era admissível ver-lhe ser aplicada “uma pena de demissão, sem saber tampouco” se iria, ou não, “ser acusado e, em sendo acusado, por que factos e crimes”: “Pode o órgão administrativo bastar-se com a mera possibilidade de ocorrência de ilícitos para aplicar uma decisão disciplinar, ainda para mais, a mais gravosa legalmente prevista? Não é necessária uma verdadeira produção de prova da ocorrência de factos integradores de ilícitos disciplinares? A não ser assim, como é que se encontram asseguradas as garantias de defesa do arguido?”
Rui Rangel questionou ainda o que aconteceria se fosse mesmo demitido e se mais tarde o processo-crime fosse arquivado ou viesse a ser absolvido em julgamento: “Neste caso teremos duas decisões, baseadas precisamente na mesma factualidade, cuja interpretação e valoração é diametralmente oposta e com gravíssimas consequências.” Ao ser expulso da magistratura, Rangel perdeu o direito a todos os seus rendimentos e, claro, o direito também a exercer funções como juiz.
O antigo juiz desembargador tentou também defender que os factos que lhe eram imputados no processo disciplinar não passavam de “asserções morais” e de “juízos de valor” sobre as suas condutas. Mesmo que fosse verdade que as suas despesas estavam a ser pagas por um terceiro, alegou, “qual o dever profissional concretamente violado com esta conduta?”, perguntou. “Quer isto dizer que, no entendimento do órgão disciplinar da magistratura, não é permitido a um juiz, por exemplo, cometer uma infração rodoviária? Não lhe é permitido exaltar-se numa situação de tráfego automóvel intenso? E, se o fizer, qual o dever concretamente violado pelo funcionário?”
Sobre factos concretos, Rui Rangel apontou o dedo ao Conselho Superior da Magistratura por este ter plasmado um rol de gastos seus e ter concluído que não podia pagar as suas despesas mensais apenas com o seu salário de juiz desembargador, mas sem especificar quais “os rendimentos incongruentes” ou quais os que “advinham de fontes de rendimentos ilícitas”. Rangel alegou ainda que, ao contrário do que sustenta a investigação do Ministério Público, Fátima Galante, mulher de quem se separou mas nunca se divorciou no papel, nunca redigiu os seus acórdãos. O que pedia à magistrada que também desempenhava funções no Tribunal da Relação de Lisboa (mas na secção cível) era para que aquela “apusesse o símbolo do Tribunal da Relação no documento das decisões exaradas por si”.
A defesa de Rui Rangel, a cargo do advogado João Nabais, invocou ainda os 35 anos do juiz ao serviço da magistratura, 13 deles no Tribunal da Relação de Lisboa, sempre com a classificação de “muito bom”; e o facto de ser pai de duas filhas menores, que dependiam do seu sustento. Tentou ainda mostrar que não existiam factos no processo disciplinar com gravidade proporcional à pena que tinha sido imposta a Rangel: a expulsão da magistratura (a mais grave possível). Ou que aquele órgão não podia usar em processo disciplinar os meios de prova do processo-crime, designadamente escutas telefónicas e mensagens de correio eletrónico. Mas para o Supremo Tribunal de Justiça nenhum destes argumentos vingou.
O acórdão conclui não existirem dúvidas sobre os motivos que conduziram à infração disciplinar devido a “factos reveladores de falta de honestidade e conduta imoral ou desonrosa, que se prolongaram no tempo e (…) que comprometeram de forma irremediável a manutenção do vínculo funcional e lesaram de forma grave a imagem de dignidade e probidade que os magistrados judiciais ainda gozam na opinião pública”.
Os juízes explicam ainda que a sanção foi a mais grave porque tomou em consideração “um contexto de acumulação de infrações, praticadas ao longo de um abrangente período de tempo”; “a gravidade da censura penal de que o autor fora objeto, associada à natureza dessas infrações” e o “alarme social” por elas causado. Esclareceram ainda que nenhuma regra dita que o procedimento disciplinar tem que aguardar pelo desenrolar do processo penal e que no processo disciplinar são admissíveis em geral todos os meios de prova previstos na lei (documentos, depoimentos de testemunhas, declarações de parte, perícias, presunções…), até porque “se os meios de prova obtidos no processo crime vierem a ser declarados ilícitos” será possível a revisão do processo disciplinar.
Recorde-se que Rui Rangel começou a ser investigado depois de ter sido apanhado de forma colateral no processo Rota do Atlântico, como a VISÃO revelou em 2016. Cerca de dois anos depois, já em 2018, o juiz foi alvo de buscas e interrogado por suspeitas de crimes como corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais. A acusação deverá estar pronta em breve. Rangel é suspeito de ter recebido pagamentos através de um advogado seu amigo e alegado testa-de-ferro (José Santos Martins) em troca de determinadas decisões judiciais favoráveis aos “clientes” que o procuravam. José Veiga e Luís Filipe Vieira são os arguidos mais sonantes do processo.