Há dois anos, Henrique Veiga-Fernandes, 47 anos, investigador e codiretor do Centro Champalimaud, recebeu na caixa de email um convite para estar presente numa reunião, na semana seguinte, na Califórnia. A proposta era que ele se juntasse a mais duas mãos-cheias de cientistas de todo o mundo, para discutir o futuro, o desconhecido, na área da inflamação. O convite vinha da Fundação Zuckerberg (alimentada pelo criador do Facebook, Mark Zuckerberg, e pela mulher, Priscilla Chan), com quem o investigador português nunca tivera qualquer contacto. Há vários anos que o investigador se dedica a estudar o processo inflamatório, com implicações em inúmeras patologias. Desde as mais óbvias, como as doenças causadas por vírus, como se tornou evidente na epidemia da Covid-19, às mais inesperadas, como a obesidade ou o cancro.
Passou um dia na Costa Oeste, apresentou as suas propostas e nunca mais teve qualquer contacto com o grupo ou com a Chan Zuckerberg Initiative (CZI), até ter sido convidado a submeter uma candidatura, para financiamento, que acabou de ser atribuída: cerca de 530 mil euros – de financiamento inicial – para ler a conversa entre os neurónios e o sistema de defesa do organismo. Uma conversa que pode acabar num beijo ou numa zanga. Na saúde ou na doença.
Com a pandemia da Covid-19, a importância do sistema imunitário, o seu papel na manutenção da saúde, entrou nas conversas do dia a dia. Já não era sem tempo?
A infeção [viral, no caso da Covid] é apenas a ponta do icebergue. O sistema imunitário faz muito mais do que combater vírus e bactérias. É uma sentinela muito pró-ativa, muito dialogante e pouco intrusiva. O que ela faz é comunicar e dialogar de forma constante com os diferentes tecidos, contribuindo para aquilo que chamamos homeostasia, ou seja: para o estado de equilíbrio do organismo. Em que é que isto se traduz? Basicamente, num estado de saúde. Perceber todas as implicações que tem este diálogo é uma área que tem vindo a tornar-se cada vez mais importante. Por exemplo, perceber de que forma o sistema imunitário se relaciona com o tecido adiposo. Há três ou quatro anos, ninguém iria pensar que o sistema de defesa controla a quantidade de gordura que acumulamos no nosso organismo.
E o contrário também acontece, ou seja: a gordura também tem impacto no sistema imunitário?
Totalmente! Daí a perigosidade da acumulação de gordura visceral que causa danos no tecido e inflamação crónica.
Aliás, a obesidade é um fator de risco para a Covid ou a gripe.
Absolutamente.
Este trabalho de investigação que se propõe agora fazer exige uma tecnologia muito inovadora. Do que se trata?
A tecnologia chama-se KISS (beijo) e é um acrónimo muito feliz, porque estamos a estudar as relações entre dois sistemas, o imunitário e o nervoso, que, sabemos agora, acabam por interagir de forma muito íntima. Com esta técnica, conseguimos iluminar as sinapses e os sinais estabelecidos entre as células. É uma ferramenta que permite utilizar as células do sistema imunitário como se fosse um anzol, em que uma proteína na sua superfície transmite informação aos neurónios. Vamos conseguir visualizar, ao nível da célula, a ação entre um glóbulo branco e um neurónio, por exemplo. Teremos uma imagem a três dimensões destes circuitos neuroimunes, um atlas.
A tecnologia também poderá ser usada para o estudo da Covid?
Para a Covid e para qualquer infeção viral, a estratégia é a mesma. Já sabemos imensas coisas! Por exemplo, para o sistema imunitário reconhecer o vírus é preciso que as células dendríticas [um tipo de leucócitos] mostrem proteínas do vírus às células de defesa que o vão eliminar. Portanto, há um processo de reconhecimento e de destruição. É o que chamamos a imunidade celular. O que sabemos é que estas células que apresentam a infeção, as tais dendríticas, também recebem informação dos neurónios. Isto já é claro. Um dos objetivos deste projeto é justamente estudar esta relação no contexto de uma infeção viral. Para já, vamos fazê-lo com o vírus da gripe sazonal, que é uma doença gravíssima, que todos os anos causa centenas de milhares de mortos no mundo inteiro. O grupo populacional de maior risco é muito coincidente com o da Covid.
Já foram feitos testes em animais, em contexto de infeção viral?
Sim, e o que vimos é que este diálogo é crítico para a regeneração do tecido durante uma infeção. Quando tratamos os animais com um neurotransmissor específico, verificamos que não só combatemos a infeção como também reparamos o tecido. O dano causado ao tecido é muito inferior, e isto traduz-se numa mortalidade zero e numa recuperação muito mais rápida.
Aliás, como temos visto na Covid, as pessoas acabam por morrer pelo dano causado, pelas sequelas da infeção.
Exatamente! As lesões que ficam no pulmão, no rim, no coração. Já há dados claríssimos em que há uma percentagem dos indivíduos com doença grave que fica com insuficiência renal, porque o tecido renal tem uns recetores aos quais o vírus se liga.
Há tecidos em que os homens são mais competentes nesta conversa entre o sistema de defesa e o sistema nervoso, e outros em que as mulheres o fazem de forma mais eficaz
Já se percebeu que o sexo masculino corre maior risco de morrer com Covid. É um lugar-comum dizer-se que as mulheres falam mais do que os homens. Será a conversa entre o sistema imunitário e o sistema nervoso menos eficaz no sexo masculino?
[Risos.] Bem, humor à parte, podemos dizer que não há qualquer evidência de diferenças entre sexos nesta conversa em particular. Agora, há uma evidência claríssima de que, dependendo do tipo de tecido em que esta conversa é estabelecida, ocorrem diferenças entre homens e mulheres. Ou seja: há tecidos em que os homens são mais competentes nesta conversa entre o sistema imunitário e o sistema nervoso, e outros em que as mulheres o fazem de forma mais eficaz. Um exemplo concreto é o modo como a gordura é regulada. E há claramente aquilo que chamamos o dimorfismo sexual.
Isto quer dizer que, nos homens e nas mulheres, a acumulação de gordura ocorre de forma diferente e que isso acontece por causa da interação entre o sistema de defesa e o sistema nervoso?
Sim, também por isso. A regulação acontece de forma completamente diferente nas mulheres e nos homens, e parece que uma grande componente desta diferença entre os sexos tem que ver com o sistema imunitário, em particular com a forma como o sistema imunitário conversa com o sistema nervoso.
Nesta comunicação entre diferentes células, ou conversa, como lhe chama, as palavras são moléculas ou impulsos elétricos?
É uma conversa molecular. Estabelece-se uma relação tão próxima, quase como uma sinapse, em que o neurónio produz neurotransmissores que são utilizados pela célula imunitária para a execução de determinadas funções. São mensagens direcionadas e altamente específicas. Isto pode permitir-nos desenvolver novos tratamentos, com muito menos efeitos secundários, porque nos possibilita aumentar a produção de neurotransmissores que atuam, de forma muito específica, em células do sistema imunitário. Já demonstrámos que acontece esta conversa num trabalho publicado na Nature, há dois anos, entre uma família de neurónios que existe no intestino e no pulmão e uma família de glóbulos brancos.
A ideia, então, será conseguir aumentar a produção das moléculas que “dizem” necessitar de linfócitos deste tipo?
É isso mesmo, e é o que já estamos a fazer. Não apenas em problemas de inflamação pura mas também em doenças oncológicas, insuficiência renal, doença metabólica.
Desta forma consegue tornar-se o sistema imunitário mais potente?
Não só mais potente como muito mais específico. Qual tem sido o grande problema no desenvolvimento de terapêuticas com base no sistema imunitário? É que existe muita redundância. Ou seja: acabam por se ativar várias famílias, vários tipos de células de defesa, e isso gera imensos problemas de eficácia, efeitos secundários. A identificação destes recetores, para famílias definidas, dá-nos um alvo terapêutico único. Neste momento, já temos três potenciais alvos terapêuticos, para insuficiência renal, tumores pancreáticos e obesidade, que continuaremos a estudar.