V., piloto de aviação, aterrou a 10 de maio no aeroporto de Ponta Delgada e preparava-se para passar as folgas em casa com a família quando foi reencaminhado para um autocarro, com escolta policial, que o levou até a um hotel juntamente com os outros passageiros. Nessa unidade hoteleira deveria permanecer fechado num quarto durante 14 dias, sem sair para qualquer espaço comum ou sequer para o corredor, sem direito a ver qualquer amigo ou familiar, comendo as 3 refeições diárias que lhe eram preparadas e levadas à porta (sem que pudesse escolher o menu).
Inconformado, V. contactou um advogado. Que arranjou um instrumento jurídico curioso para libertar o piloto, apresentando no tribunal de Ponta Delgada um habeas corpus (pedido de libertação imediata), usado normalmente quando alguém considera a sua detenção ou a sua prisão (ou a de outrem) ilegal. A Autoridade de Saúde Regional invocou que o que estava em causa não era uma privação de liberdade, mas apenas uma mera restrição do direito à circulação – razão pela qual o habeas corpus nem devia ser aceite. Mas a juíza de instrução criminal não teve o mesmo entendimento: não só aceitou o habeas corpus, como defendeu que era mais do que legítimo que fosse usado naquela situação, como mandou libertar de imediato o piloto daquela quarentena obrigatória e ainda teceu duras críticas às medidas impostas pelo governo regional dos Açores e pela Autoridade de Saúde Regional aos passageiros que aterravam nas ilhas – fossem eles ou não açorianos.
Na decisão, a juíza Patrícia Pedreiras descreveu que V. ficou confinado num quarto de hotel sem ver familiares, “sujeito a alimentar-se com as refeições que estão pré-definidas por outrem, ficou impedido de receber bens que não os de primeira necessidade vindos do exterior, designadamente roupa que, aparentemente, não é considerado bem de primeira necessidade; ficou responsável pela manutenção e limpeza do quarto e pelo tratamento da sua roupa pessoal, não lhe sendo dado acesso aos serviços de lavandaria do hotel.” E concluiu que “dizer que perante este quadro é o direito de circulação do requerente que está limitado, é encarar de modo absolutamente redutor a realidade. O direito de circulação está limitado, porque limitada está a sua liberdade.”
A magistrada foi ainda mais longe ao invocar que, nalguns aspectos, até um recluso parecia ter mais direitos que um passageiro chegado às ilhas sem qualquer sintoma de Covid-19: “Cremos que qualquer cidadão perante este quadro não tem dúvidas em concluir que a liberdade que o requerente tem naquela situação em pouco difere da liberdade que tem um recluso que se encontra preso num estabelecimento prisional. Que tem mais conforto, melhores condições sem dúvida; maior liberdade de circulação, aí parece que a vantagem pende para o recluso.”
Para tomar a decisão de libertação, a juíza concentrou-se largamente no cenário de privação de liberdade num quarto de hotel, lembrando que no caso da ilha de São Miguel os passageiros estavam a ser reencaminhados para duas unidades hoteleiras e que uma delas, ao contrário daquela em que V. ficou hospedado, nem varandas tinha. Logo, o poder de circulação de V. – ou de qualquer outro dos passageiros em idêntica situação – estava “de tal modo limitado que o ir e vir que lhes é permitido se circunscreve entre a porta do quarto e a varanda desse mesmo quarto. Outros há que nem varanda têm e que, tendo viajado em família, terão de partilhar o quarto (casal e filhos) durante o mesmo período de 14 dias”, frisou a juíza, que assim rematou: “É inexorável concluir que estamos perante uma verdadeira privação da liberdade pessoal e física do requerente, não consentida pelo mesmo, que o impede não só de se deslocar como de estar com a sua família.”
Medida inconstitucional
A magistrada citou acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que defendem que os habeas corpus não podem ser entendidos de forma restritiva – ou seja, não são para ser usados apenas em casos de prisão em cadeias – para sustentar porque o admitia neste caso, e também concluiu que o governo regional não tinha competência para legislar sobre esta matéria, sobretudo depois de terminado o estado de emergência, no dia 2 de maio.
Porque só a Assembleia da República ou o governo, com a autorização desta, lembrou, têm competência para legislar sobre direitos, liberdades e garantias. O governo regional não tem esse poder, “mesmo tendo em conta o tempo de pandemia que vivemos”, diz a juíza. Além de que, recorda a magistrada, “com a cessação do estado de emergência (…) cessaram as restrições que foram impostas a direitos constitucionais, como o direito à liberdade, os quais readquiriram a sua plenitude”. Assim, a resolução do Conselho do Governo, ao impor já em maio “o confinamento profilático obrigatório (…) restringe de forma flagrante o direito à liberdade, estando ferida de inconstitucionalidade, uma vez que a Constituição da República Portuguesa não reconhece legitimidade ao mesmo para a restrição de direitos fundamentais”.
A juíza de instrução do Tribunal de Ponta Delgada diz ainda que a resolução do Conselho do Governo Regional violava os princípios da proporcionalidade e da igualdade. E porquê? Porque “o único pressuposto para o confinamento obrigatório em unidade hoteleira, por 14 dias” era “ser passageiro num voo” que aterrava na Região Autónoma dos Açores. “Ser ou não residente na região, estar ou não infectado, ter ou não condições para se manter confinado noutro local, é absolutamente irrelevante.” E a partir das 0 horas do dia 8 de maio o cenário era ainda pior: os não residentes tinham de pagar o hotel durante esses dias de confinamento obrigatório. Era o que teria acontecido a V., se não tivesse morada em São Miguel.
“Confinado num hotel sem estar infectado ou sem suspeitas fundadas de o estar, quando outros que estão efetivamente infectados permanecem no seu domicílio”, focou a juíza, para sustentar a tese da desigualdade.
E todas estas medidas se tornavam ainda mais desproporcionais, argumentava a juíza, porque não era imposto qualquer confinamento obrigatório profilático a pessoas que desembarcavam noutros aeroportos portugueses – quer tivessem vindo do estrangeiro quer de território nacional. “Não deixa de ser igualmente perturbadora a circunstância de vigorando o estado de calamidade em todo o país qualquer residente no continente possa desembarcar em qualquer aeroporto e dirigir-se livremente para casa, mas nas regiões autónomas tenha de ficar confinado num hotel.” Era este, aliás, o próprio caso de V.: que tinha vindo do estrangeiro, aterrado em Lisboa no dia 8 de maio sem qualquer restrição mas que se viu sujeito a ir para um hotel quando dois dias depois chegou a São Miguel, ilha onde reside com a família. “Confinado num hotel sem estar infectado ou sem suspeitas fundadas de o estar, quando outros que estão efetivamente infectados permanecem no seu domicílio”, focou a juíza, para sustentar a tese da desigualdade.
Todos estes argumentos levaram a magistrada a considerar as normas do Governo Regional inconstitucionais e a ordenar a libertação imediata de V., que foi então sujeito pela primeira vez a um teste de despiste de Covid-19 (até então recebia apenas chamadas para averiguar se apresentava ou não sintomas, embora não tivesse, por exemplo, um termómetro à disposição no quarto para medir a febre). E não foi o único a salvar-se da clausura. Por arrasto, a Autoridade de Saúde Regional mandou libertar todos os 350 passageiros que se encontravam em quarentena preventiva nos hotéis dos Açores, não sem antes lhes fazer o teste de despiste. Ao todo, desde que o governo regional tinha imposto quarentenas obrigatórias para fazer face à pandemia, desde 26 de março, cerca de 750 pessoas tinham ficado confinadas em unidades hoteleiras: destas, só três terão testado positivo.
O habeas corpus apresentado pelo advogado Pedro Bettencourt Gomes acabou por fazer história – e não só por ter “libertado” centenas de pessoas de uma vez (quem preferiu ficar hospedado, porque não tinha como viajar para a sua ilha de residência, por exemplo, não perdeu esse direito). Dias depois, o governo regional dos Açores voltou atrás e revogou a medida: já não são necessárias quarentenas obrigatórias para quem chega aos aeroportos de São Miguel e da Terceira (as ilhas que estão neste momento a receber voos regulares da TAP).
À VISÃO, o advogado recorda que dias antes de ter interposto este habeas corpus já tinha apresentado queixa à Provedoria de Justiça por entender que a medida prolongada a 4 de maio pelo Governo Regional (já fora do estado de emergência), de reencaminhar todos os passageiros à chegada às ilhas para duas semanas de confinamento obrigatório, era inconstitucional. “Se o estado de emergência terminou a 2 de maio, não estando já em vigor um estado de exceção entendi que não havia razão para se manterem as quarentenas. E quando fui contactado pelo meu cliente, entendi que a melhor forma de reagirmos era contra uma detenção ilegal. Porque era isso, uma prisão ilegal. Estes passageiros foram escoltados para ficarem confinados. Não podiam escolher as refeições. Não havia uma sala disponível para se encontrarem com a família. Não podiam receber alimentos ou roupas de fora. E no caso do meu cliente nem sequer tinha um termómetro para perceber se apresentava sintomas de febre ou não”, explica o Pedro Bettencourt Gomes à VISÃO. O habeas corpus foi entregue no dia 13 de maio, quarta-feira, e logo no dia seguinte foi feita a audiência. No sábado, dia 16, pelas 12h, a juíza decidiu. E logo de seguida o governo regional voltou atrás na obrigatoriedade das quarentenas: agora, os passageiros têm quatro opções: apresentarem um teste, serem testados à chegada, viajarem para outro local ou cumprirem uma quarentena mas voluntária.