Se por um lado nunca houve tanta e tão boa informação, disponível de forma gratuita e livre, como desde que enfrentamos a pandemia de Covid-19, também nunca os tempos foram tão profícuos em mitos, teorias da conspiração, fake news – várias designações que na prática se podem reduzir a uma única palavra: mentira. Médicos, cientistas, professores e divulgadores de ciência esforçam-se para travar o progresso desta epidemia, que se propaga à velocidade estonteante das partilhas nas redes sociais. Em Portugal há vários projetos desta natureza, com diferentes destinatários, seja o público em geral, seja especialmente direcionado aos profissionais de saúde.
Inês Narciso, especialista em criminologia, tem-se dedicado nos últimos anos a este trabalho de detetive que começa pela suspeita de uma mentira. A desinformação pode circular nos mais diferentes formatos: Áudio – pensemos nas gravações que circularam no whatsapp no início da epidemia de Covid-19, que supostamente denunciavam problemas graves em hospitais – em vídeo – o viral do momento é o Plandemic, em que se entrevista uma pseudo investigadora – ou em notícias falsas, como é exemplo a relação, inexistente, entre o uso de máscara e uma crise de hipóxia (falta de oxigénio). A seguir vem o desmontar de toda a argumentação. “Muitas vezes a verificação já foi feita a nível internacional, pela Poynter [rede internacional de fact-checking ou verificação de factos], por exemplo, uma vez que boa parte dos temas são transnacionais”, explica a investigadora do laboratório de estudo da comunicação, Media Lab, do Iscte. Quando não há nada feito ainda, é começar do zero. Procurar a origem do conteúdo, verificar se a imagem é verdadeira ou se foi manipulada e depois explicar passo-a-passo tudo o que foi feito. “Explico sempre qual foi o processo, o trabalho é lido pelos meus colegas e só depois é publicado. Não somos donos da verdade”, sublinha. Um exemplo de uma foto manipulada para passar uma mensagem falsa é a que circulou no início da pandemia que mostrava os bares da zona do Cais do Sodré, em Lisboa, cheios.
“As pessoas sentem-se excluídas e começam a inventar coisas”, avança Inês, como explicação para esta necessidade de distorcer a verdade. E como mensagem subliminar está sempre a “desconfiança nas instituições”, complementa. Quando se está em crise mundial, a ansiedade e o medo tornam-nos mais sujeitos a acreditar sem verificar, sem duvidar. O medo faz baixar a guarda e há uma necessidade informação que por vezes não é imediatamente satisfeita, por não estar ainda disponível, o que cria espaço para a proliferação das mentiras.
Esta não é uma novidade dos tempos Covid, embora tenha crescido de forma estrondosa neste período de anormalidade global, levando a um consequente aumento de iniciativas de desmontagem. “Desde que a Covid começou, houve um aumento de 800% do fact checking”, nota Inês.
Os médicos também precisam de ajuda
O CovidCheck.pt é um dos novos projetos portugueses, totalmente dedicado à caça de mitos da Covid. Resulta de uma colaboração entre o Media Lab, a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, o Cenjor (Centro de Formação para Jornalistas) e o Evidentia Médica, um projeto que analisa informação médica, divulgando-a numa newsletter e num podcast, e recebeu recentemente financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian. “O projeto CovidCheck.pt nasceu da constatação de que um dos grandes problemas da pandemia provocada pelo coronavírus é a informação e comunicação. Por um lado, há falta de informação, informação dúbia ou incompleta. Por outro, há uma verdadeira infodemia de desinformação, com consequências perigosas para a saúde”, nota Miguel Crespo, jornalista e investigador de comunicação digital do Media Lab, Iscte. Há já algum tempo que o médico David Rodrigues, coordenador da Unidade de Medicina Geral e Familiar do Hospital CUF Torres Vedras e professor da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas da Universidade NOVA de Lisboa, se dedicava à tarefa de esclarecer os pares, através do projeto Evidentia Médica, alargando um trabalho que foi aperfeiçoando desde a licenciatura em Medicina, pelo hábito de ir buscar a informação à fonte, ou seja, aos artigos científicos. Porque os médicos também precisam de ajuda para encontrarem a melhor evidência.
Em tempos de Covid, o caminho complicou-se. “Antes analisávamos um artigo por semana, agora é praticamente um por dia”, conta David Rodrigues. No início, o alvo do trabalho eram os colegas, mas neste momento já é procurado por doentes, jornalistas e público em geral. Todo este trabalho de pesquisa e leitura de artigos é disponibilizado de forma gratuita, graças à parceria com a empresa de soluções digitais para médicos, UpHill, fundada por dois médicos. “Sentimos que há uma enorme necessidade de informar os médicos relativamente à melhor evidência disponível e por isso o nosso apoio ao projeto é feito em regime pro bono”, diz o CEO da UpHill, Eduardo Freire Rodrigues.
Um conceito muito importante nesta questão da evidência científica é a noção de que o conhecimento não para – mais ainda numa altura em que os melhores cientistas do mundo conjugam esforços para entender um organismo novo, como é o caso do SARS-CoV-2. “A nosso conclusão é sempre relativa à data em que analisamos o problema”, sublinha Inês Narciso. Um bom exemplo disso é a eterna questão do uso de máscaras, que continua a não ser consensual e a alimentar fortes discussões. Apesar disso, ainda ninguém partiu para a violência, como aconteceu durante as eleições em que o grupo de MediaLab chegou a receber ameaças de morte, revela Inês. É que às vezes a verdade pode ser inconveniente.