Ainda não se falava de nenhum novo coronavírus quando Wuhan recebeu os Jogos Militares Mundiais, entre 18 e 26 de outubro de 2019. Engalanada para receber o acontecimento, a cidade preparara-se a rigor para ser uma digna sucessora do evento cuja primeira edição decorreu em Roma em 1995, para assinalar os 50 anos do fim da II Guerra Mundial. Antes disso, aqueles jogos já tinham passado por Zagreb, na Croácia, Hyderabad, na Índia, o Rio de Janeiro, no Brasil e Mungyeong, Coreia do Sul. Durante aqueles dez dias, pouco depois de um outro luxuoso desfile militar em Pequim para assinalar o 70º aniversário daquela República Popular, estariam em Wuhan perto de mil soldados de 140 países.
Na apresentação dos jogos organizados pelo Conselho Internacional do Desporto Militar (a segunda maior organização desportiva a nível global, depois do Comité Olímpico) lá estava, como esperado o presidente da China, Xi Jinping. Na sua mente, avançaria fonte da organização ao South China Morning Post, aquela era a oportunidade de ouro para promover a diplomacia militar a nível internacional. Afinal, era a primeira vez que o evento decorria na China, a qual era, a par da Rússia, detentora do maior número de medalhas.
Para sediar o megaevento na sua 9ª cidade mais povoada – qualquer coisa como 11 milhões de habitantes, mais ou menos a população de Portugal – a China construiu de raiz uma nova aldeia para acolher os 10 mil atletas inscritos na competição. Previstos estavam ainda o maior número de modalidades de sempre, do badminton ao ténis até à ginástica masculina, incluídas pela primeira vez. Só as forças armadas americanas enviaram cerca de 300 atletas para a competição.
Daí que, depois de serem acusados pelos americanos de terem deixado escapar esta “arma biológica” desenvolvida em laboratório, os responsáveis chineses tenham devolvido as acusações. “Quando apareceu o primeiro doente nos Estados Unidos? Quantas pessoas estão infetadas? Podem bem ter sido o exército americano a espalhar o vírus por cá, durante os jogos militares”, escreveu no twitter Zhao Lijing, atual responsável pelo Departamento de Informação do Ministério das Relações Exteriores e que, há dez anos, fizera uma passagem pela embaixada da China nos EUA.
“É só mais uma teoria da conspiração”
As recentes acusações de Luc Montagnier, o virologista francês conhecido por ter identificado o vírus do VIH em 1983, trouxeram aquela cidade de novo para a ribalta. Segundo a sua tese, a fonte da pandemia era o conhecido Instituto de Virologia de Wuhan, um laboratório de biossegurança aninhado nos arredores montanhosos da cidade – e não o entretanto famoso mercado de vida selvagem na zona centro, como apontaram as autoridades locais.
É naquele instituto que está instalado o China Center for Virus Culture Collection, o maior banco de vírus da Ásia que preserva mais de 1.500 estirpes. É ali também que se ergue o primeiro laboratório da Ásia equipado para lidar com agentes patogénicos de classe 4. Ou seja, de risco grave para o manipulador e para a comunidade, dada a alta capacidade de transmissão de pessoa para pessoa.
Com 3 mil metros quadrados, divididos por um prédio quadrado e um anexo cilíndrico, não dava, no entanto, numa visita recente da agência AFP, quaisquer sinais de ter vida lá dentro. Na porta do complexo, um cartaz avisava: “Forte prevenção e controlo, não entre em pânico. Ouça a informação oficial e acredite na ciência”. E ainda “Não espalhe boatos”.
Em sua defesa saiu já também Yuan Zhiming, diretor do instituto. “Trata-se de mais uma teoria da conspiração. Não há forma de o vírus ter saído daqui.” Segundo aquele especialista em microbiologia e biotecnologia, que chegou a trabalhar em França, na Dinamarca e nos EUA, “o ser humano não tem capacidade para sintetizar um vírus assim”. E insistiu que a sua relação com este coronavírus é pública: as primeiras amostras do até então desconhecido vírus foram recebidos a 30 de dezembro; a sequência do genoma viral determinada a 2 de janeiro; e a informação partilhada com a Organização Mundial de Saúde a 12 de janeiro.
Uma questão em aberto?
Mas, mesmo entre os chineses, a tese oficial do virus que saltou do morcego para o pangolim, num infame mercado de animais vivos em Wuhan, não é unânime. Falamos da investigação conduzida por Shi Zhengli, uma das principais especialistas em coronavírus de morcego, e vice-diretora do tal laboratório de classe 4. Segundo garantiu à Scientific American, a sequência do genoma deste SARS coV-2 era similiar a outros conhecidos, mas não correspondia a nenhum dos coronavírus daquele animal que o seu laboratório tinha recolhido e estudado anteriormente.
A concordar com essa tese está também Filippa Lentzos, investigadora em biossegurança do King’s College London. Por um lado, insiste, não há provas para a teoria dos acidentes de laboratório, Por outro, também não há evidência reais de que o vírus saltou a barreira das espécies no tal mercado. Citada pela Sky News, Lentzos é clara: “Para mim, a origem da pandemia ainda é uma questão em aberto” .