Com grande parte do mundo fechado em casa, com voos suspensos e fronteiras encerradas, também os criminosos tiveram de se adaptar às novas realidades da pandemia. Relatórios internacionais dizem que nunca se cometeram tão poucos crimes como agora. E porquê? Porque, lá está, com boa parte da população trancada em casa, mais polícia nas ruas, aviões em terra e as fronteiras terrestres fechadas, muitos criminosos deixaram de conseguir importar produtos ou de conseguir vendê-los fora das suas fronteiras, ou perderam simplesmente a oportunidade de praticar os delitos em que se especializaram – nalguns casos por questões tão simples como as ruas não estarem desertas ou as casas não estarem vazias. Por todo o mundo, não só pequenos bandidos, mas também organizações criminosas, gangues, máfias ou cartéis estão a “sofrer” o impacto das medidas de combate à Covid-19. Portugal não é exceção.
Voos suspensos são um desastre para o contrabando e o narcotráfico
Estudos dão conta de uma redução brutal dos crimes de tráfico, contrabando ou venda de produtos contrafeitos. Tudo isto pelas mesmas razões. Por um lado, uma maior dificuldade em trazer de países como a China os produtos que se iriam vender ou as substâncias necessárias para o seu fabrico. Por outro, menor facilidade em transportar cargas ou fazê-las sair para o exterior. Muitas fábricas fecharam, as encomendas não se despacham à mesma velocidade, os aviões estão quase todos parados, os que aterram são mais supervisionados pelas autoridades e as fronteiras terrestres estão mais controladas do que alguma vez estiveram. Além de que, com menos carros e mais polícias nas ruas, mais expostos ficam os movimentos suspeitos.
Em Portugal, estas alterações nas dinâmicas das viagens promoveram mudanças em todos os tipos de tráfico e crimes transnacionais, mas é sobretudo visível no tráfico de droga. “Regista-se uma grande quebra, sobretudo do tráfico por via aérea”, admite Artur Vaz, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) da Polícia Judiciária (PJ). O combate ao novo coronavírus traz, para já, inúmeras dificuldades às organizações criminosas, mas que ninguém se iluda: “Faz parte do ADN destas organizações saberem adaptar-se muito rapidamente”, acrescenta o responsável da PJ que adivinha que, face às dificuldades de deslocação por terra e por ar, o tráfico por via marítima venha a aumentar.
A nova realidade está a causar estragos até nas finanças dos principais traficantes do mundo. Por causa da restrição de viagens, o Cartel Jalisco Nova Geração tem a produção de estupefacientes praticamente paralisada, de acordo com declarações do ministério da Justiça mexicano aos órgãos de informação daquele país e de acordo com os relatórios do Insight Crime (Investigação e Análise do Crime Organizado) – porque não consegue importar da China um dos químicos mais usados na produção de drogas sintéticas: o fentanil, um opiáceo utilizado contra a dor, 50 vezes mais potente que a heroína e o que mais mata por overdose nos Estados Unidos da América.
Até aqui, o mais habitual era essa droga ser comprada na China e movida para laboratórios clandestinos no México, onde acabava por ser misturada com outros narcóticos, como cocaína e heroína. Depois seguia pelo país em pequenos carregamentos de comida, acabando por chegar aos Estados Unidos, o principal consumidor da droga made in México. Esta dinâmica permitiu aos cartéis mexicanos criarem uma extensa rede de distribuição, mas que serve de pouco agora que a China, um dos principais fornecedores da matéria-prima para o fabrico de estupefacientes, teve de abrandar a produção devido aos números crescentes da Covid-19, e as fronteiras entre os EUA e o México foram encerradas.
Por arrasto, o problema conduziu a outro fenómeno junto dos compradores. Como é mais difícil conseguir substâncias para a produção, e como é mais difícil fazer sair a droga para outros países, o preço dos estupefacientes disparou. Ao semanário mexicano Ríodoce, um dos patrões do cartel de Sinaloa, Ismael “El Mayo” Zambada, relatou que o preço das drogas sintéticas inevitavelmente aumentou. E que meio quilo de metanfetamina, uma droga sintética estimulante conhecida como cristal, passou de 2 500 pesos (cerca de €93) para 15 mil pesos (€555). O responsável da PJ Artur Vaz admite que em Portugal aconteça o mesmo. “É a lei do mercado a funcionar. Se há menos…”
Do México chegam relatos da venda de um quilo de metanfetamina por 3200 dólares, mais do triplo do valor de há umas semanas
Os constrangimentos sofridos pelos negócios legais com a pandemia são agora muito semelhantes aos vividos nos negócios do crime, dos grandes cartéis de droga do México aos vendedores de rua em todo o mundo. Cecil Mangrum, que investiga o narcotráfico na Polícia de Los Angeles, afirmou à Reuters que um informador teria recebido do México uma proposta de venda de metanfetamina por 3 200 dólares o quilo: mais do triplo do valor pelo qual a mesma quantidade era vendida há poucas semanas. Também John Callery, agente especial ao serviço da DEA ( Departamento de Justiça dos Estados Unidos que investiga o tráfico de droga) em San Diego, afirmou que o preço das drogas em geral subiu aproximadamente 20%, mas que no caso da metanfetamina o valor a que é vendida disparou para preços absurdos: mais do que dobrou nas últimas duas semanas: 450 gramas custam agora 2 mil dólares (€1 848).
No campo da venda de bens contrafeitos, também o gangue Unión Tepito, grupo que controla a venda de produtos falsificados na enorme e populosa Cidade do México, deixou de conseguir comprar mercadorias. Uma das células controlada pelo grupo, conhecida como “Os Marcopolos”, pessoas que costumavam viajar para a China para negociar esses produtos e os fazer seguir dentro de contentores, deixaram de conseguir viajar devido à obrigatoriedade de confinamento e à suspensão de voos para aquele país asiático. Sem rotas alternativas, pequenos comerciantes de mercados como o Tepito Market (Cidade do México) estão a ficar sem produto para vender e, sem rendimentos, ameaçam agora não pagar as habituais comissões ao cartel. Perante as ameaças de morte dos chefes do Unión Tepito, muitos têm procurado ajuda policial para garantir a sua segurança.
Ruas vazias são péssimas para furtos, roubos e assaltos
Se não há vítimas nas ruas, o que é que também não há? Crimes como furtos e roubos. Sim, mas continuam a existir casas e há grupos que se dedicam a assaltar residências. Tudo verdade, mas essas casas agora estão todas ocupadas, e as dos vizinhos também, e a maioria dos assaltantes prefere assaltar imóveis quando estes estão vazios. Ok, mas e o roubo de carros? Estes continuam na rua, portanto continuam a ser roubados, certo? Não é bem assim.
O relatório Crime e Contágio, publicado há um mês pela Iniciativa Global contra o Crime Transnacional Organizado (GI-TOC, na sigla em inglês), relata casos como o da Bósnia, país onde os números de roubo de carros sempre foram altíssimos. “Os criminosos dizem ser mais difícil roubar carros quando o movimento é limitado e as ruas estão vazias”, diz o texto. A GI-TOC também registou uma diminuição do número de roubos e homicídios na Sérvia e em Montenegro.
Nos Estados Unidos, só na semana entre 15 e 21 de março houve uma queda de 42% de crimes em São Francisco, 24% em Nova Iorque, 22% em Detroit, 19% em Los Angeles e 13% em Chicago. Também no Reino Unido, há registo de quebras de 20% nos números da criminalidade. Ao jornal inglês Guardian, Andy Cooke, que preside ao Conselho Nacional de Chefes de Polícia (NPCC), justificou as menores doses de violência com o encerramento de bares e discotecas. E acrescentou que também os assaltos a lojas de conveniências, feitos sobretudo pelos mais jovens, praticamente desapareceram porque “todos os estabelecimentos estão fechados”.
A Covid-19 é mina de ouro para crimes na internet
O que vai contra a tendência e tem aumentado são os crimes cometidos pela internet, como as burlas ou as fraudes com cartões de crédito, através de supostos pedidos de donativos ou roubo de credenciais de acesso (o chamado phishing). É assim um pouco por todo o mundo e também em Portugal.
Carlos Cabreiro, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica (UNC3T) da PJ, explica à VISÃO que em Portugal o crime informático “já estava a crescer porque cada vez há mais compras e comunicações online” e essa trajetória ascendente manteve-se com a quarentena: “Notou-se claramente um maior acréscimo nesta fase da pandemia e também mais pessoas predispostas a denunciar”.
Um dos métodos mais usados no mundo do cibercrime continua a ser o phishing, isto é, a captura de credenciais de acesso, de utilizadores e respectivas passwords, não só das contas bancárias, mas também dos emails, Portal das Finanças ou redes sociais. “O que só nos leva a reforçar que as pessoas devem ser educadas a não usar passwords iguais ou semalhantes em vários sites”, alerta Carlos Cabreiro.
Esses roubos de credenciais têm chegado sobretudo através de sms ou e-mails, com aparência real, e com a indicação de remetentes aparentemente credíveis, como a Organização Mundial de Saúde. “Usam nomes de entidades credíveis e enviam mensagens direcionadas ao tema da Covid-19, porque sabem que assim vão criar interesse nas pessoas e estas vão ser levadas a clicar”, esclarece o responsável da Polícia Judiciária. “A palavra Covid-19 puxa muito pelas pessoas e estes criminosos aproveitam-se muito destas fragilidades. Estas devem sempre acautelar-se, duvidar sempre da primeira informação, pesquisar bem que empresa é aquela que as contacta e, se preciso for, nunca pagar nada antes de pedir esclarecimentos às autoridades.”
Outros fenómenos que cresceram em Portugal com a pandemia foram as burlas através de falsas campanhas de donativos (para compra de testes e vacinas, por exemplo), a intrusão em plataformas de reuniões e videoconferências como o Zoom, crimes sobre as infraestruturas de VPN – “talvez porque as empresas tenham baixado a guarda no que diz respeito à segurança” – e situações de malware e ransomware, que passam por mensagens a informar um utilizador de que alguém está na posse das suas credenciais de acesso, dos seus ficheiros ou das suas imagens íntimas, e se os quiser reaver ou evitar que sejam partilhados publicamente deverá pagar um resgate em bitcoins.
Outro fenómeno em crescendo são as tentativas de intrusão informática nos sites de grandes instituições. Recentemente, foi a EDP a sofrer dois ataques de dois grupos de hackers distintos, que continuam a ser investigados e quase promoveram um apagão geral no servidores da empresa de energia, como noticiou a Exame Informática.
Um desses grupos internacionais, o Cyberteam, ameaçara também com um ataque de larga escala às empresas nacionais a 25 de abril. Carlos Cabreiro explicou à VISÃO que a PJ esteve de prevenção, reconheceu que houve algumas tentativas de intrusão, mas garante que estas foram bloqueadas pelos investigadores.
A pandemia, diz quem investiga, criou novas oportunidades, mas também não dá para descurar que há mais pessoas a disponibilizarem os seus dados na internet. “A mente de um criminoso procura sempre novas formas de iludir as pessoas. Há dois anos, parte das burlas e roubos giravam à volta das queimadas, quando se falava da hipótese de as pessoas serem multadas. Há 20 anos, giravam à volta da troca dos escudos pelos euros, agora é a pandemia”, diz uma fonte da Polícia Judiciária.
Recentemente, também a Europol publicou um relatório chamado Lucro na Pandemia, que alerta para a reciclagem de velhos golpes online usando mensagens relacionadas com o novo coronavírus. Os esquemas mais comuns, segundo esta polícia europeia, giram à volta da venda de testes fraudulentos, máscaras e medicamentos contrafeitos, e de links que prometem a cura para a doença.
Em França, hospitais, farmácias e lares de idosos tornaram-se as principais vítimas destes golpes. Segundo o Le Monde, “os criminosos adaptaram-se rapidamente à Covid-19”. O mais comum é o bandido fazer-se passar por um fornecedor, que alega ter recebido álcool em gel ou máscaras de proteção, e incentiva a vítima – muitas vezes os próprios hospitais – a fazerem a encomenda antes que o stock acabe.
Os truques de sedução das máfias e dos cartéis
E se por um lado a pandemia virou o negócio dos cartéis e das máfias de pernas para o ar, e está a ameaçar as suas finanças, por outro há quem tema que estes sindicatos do crime se aproveitem da ameaça da doença para conquistarem o apoio das populações e roubarem território aos cartéis concorrentes.
De acordo com o Guardian, o cartel Los Viagras, por exemplo, tem aproveitado para distribuir sacos cheios de comida na cidade de Michoacan, território até agora dominado pelo cartel Jalisco. O Cartel do Golfo também aproveitou para “espalhar o bem” em Tamaulipas, estado que faz fronteira com o sul do Texas, e não esqueceu a assinatura de guerra. No topo das caixas com óleo, açúcar e outros alimentos básicos que distribuiu aos mais carenciados escreveu “Cartel do Golfo, em apoio à Ciudad Victoria” (capital daquele estado). E também a filha de El Chapo, Alejandrina Guzmán, não teve pudores em publicar um vídeo no Facebook a mostrar-se juntamente com outras mulheres a encherem pacotes com enlatados, feijão, arroz e papel higiénico a que chamaram “Pacotes Chapo”.
O juiz italiano Federico Cafiero de Raho avisa: “Não há crise que não seja uma grande oportunidade para as máfias.”
Em Itália, o que se passa com as máfias não é muito diferente do que se passa no México com os cartéis. Em entrevista ao La Repubblica, o escritor Roberto Saviano antevê que isso venha a trazer maiores problemas no futuro, quando os empresários, com dificuldade em pagar rendas e salários a funcionários, a estes recorrerem, até ficarem nas suas mãos. “Basta olhar para o portfólio das máfias, para ver quanto elas podem ganhar com essa pandemia”, disse o autor. Uma das grandes estratégias das máfias, recorde-se, é emprestar dinheiro. Ao mesmo jornal, também o juiz italiano Federico Cafiero de Raho manifestou-se assim: “Não há crise que não seja uma grande oportunidade para as máfias.” E o presidente da Câmara de Nápoles, Luigi de Magistris, já deixou o aviso: “Se o Estado não chega, chega o crime, disfarçado de benfeitor, dá-te de comer e depois cobra a conta.”