A invenção de uma melodia por Mozart. Os cálculos das leis que regem a gravidade do mundo, por Newton. Uma carta de amor de Pessoa. A conta de 20 sessões no divã, assinada por Freud. Estes são apenas alguns dos 140 tesouros escolhidos da imensa coleção do brasileiro Pedro Corrêa do Lago e revelados no livro “A Magia do Manuscrito”, editado pela Taschen, com a curadoria de Christine Nelson, do The Morgan Library & Museum, de Nova Iorque.
Até há poucos meses, estes pedaços de história escrita à mão podiam apenas ser vislumbrados por quem o colecionador brasileiro convidava a entrar na sala-cofre à prova de fogo da sua casa. Só com o desafio para realizar uma grande exposição em Nova Iorque, em 2018 – a mesma mostra chegará a São Paulo, no Brasil, em junho de 2020 –, o grande público teve, pela primeira vez, a possibilidade de ver tantas raridades reunidas num só local.
“A Magia do Manuscrito” nasceu como livro-catálogo da exposição no Morgan Library & Museum, tendo a edição portuguesa sido lançada em Lisboa em janeiro de 2020, depois das edições em inglês, francês, alemão, italiano e espanhol.
Aos 17 anos, em Lisboa, gastei o meu último dinheiro [no alfarrabista] numa carta de Dom Sebastião. Era uma carta de 1571, passei fome com a maior alegria
pedro corrêa do lago
Nas páginas deste livro é reproduzido um pergaminho de 1153, assinado por quatro papas medievais, e um exemplar de “A Breve História do Tempo” com a impressão digital do polegar direito de Stephen Hawking, de 2006. Há documentos oficiais e cartas pessoais, fragmentos de todos os dias anotados num qualquer pedaço de papel e conjuntos de manuscritos que vieram a ser obras de uma vida.
Descobrimos esboços e anotações, tentativas e erros, pensamentos em evolução. É como se viajássemos até ao momento em que o autor transpunha as suas ideias para o papel, e conseguíssemos, de alguma forma, criar uma relação de proximidade com ele – de intimidade, até.
De Freud há inclusive uma carta para a sua mãe… Era o seu 94º aniversário e ele enviava-lhe 6 dólares para ela comprar algo do seu agrado.

Créditos: Colecção de Pedro Corrêa do Lago
Pedro Corrêa do Lago passou os últimos 50 anos a coleccionar milhares de documentos manuscritos, uma paixão que iniciou aos 11 anos, pedindo autógrafos a figuras famosas. Começou por escrever a J. R. R. Tolkien, autor de “O Senhor dos Anéis”, e ao realizador francês François Truffaut. Em menos de uma semana recebeu uma carta da secretária de Tolkien dizendo que ele tinha tantos pedidos que criara a regra de não dar autógrafos. Ficou desanimado mas, umas semanas depois, recebeu uma encomenda especial: o livro “L’Enfant Sauvage”, que Truffaut adaptara ao cinema, com uma dedicatória do realizador.
A partir daí escreveu centenas de cartas, usando um velho livro do pai, “Quem é Quem no Mundo”, como guia. O pai de Pedro Corrêa do Lago foi embaixador do Brasil em vários países, tendo-se reformado em Paris, e parte da infância e da adolescência do coleccionador foi passada a viajar entre as principais capitais do mundo. O seu padrinho era embaixador em Londres e foi aos 13 anos que o jovem Pedro descobriu que existia em Inglaterra um alfarrabista que negociava autógrafos. A sua primeira compra, em 1971, foi um pequeno envelope assinado pela rainha Vitória.
Aos 17 anos, em Lisboa, fez a primeira visita ao conde Almarjão, ou Dom José Maria da Costa e Silva, um alfarrabista que tinha relações privilegiadas com famílias de origem aristocrática e vendia muitos documentos históricos manuscritos.
“Foi uma espécie de padrinho de todos os coleccionadores portugueses e de alguns brasileiros. Como queria que as coisas se vendessem, fazia preços muito modestos. Todos os coleccionadores foram muito encorajados por ele”, contou Corrêa do Lago em entrevista ao Público, lembrando uma das compras mais emocionantes da sua vida. “Naquela época [1975] não tinha cartão de crédito, só o dinheiro que se guardava no bolso ou os Traveller’ s cheques. Eu nem isso tinha. Já não tinha dinheiro para quase nada e gastei o meu último dinheiro numa carta de Dom Sebastião. Era uma carta de 1571, uma carta original. Passei fome com a maior alegria.”

Créditos: Colecção de Pedro Corrêa do Lago
Corrêa do Lago formou-se em Economia e chegou a exercer a profissão na banca, mas a paixão pelos manuscritos falou mais alto. Decidiu abrir uma livraria alfarrabista em São Paulo, em 1987, que viria a encerrar para assumir a presidência da Biblioteca Nacional do Brasil (2003-2005), tendo depois criado com a sua mulher, Bia, a editora Capivara. Além de ter dedicado a vida a construir uma colecção ímpar, desenvolveu um trabalho de investigação notável, sendo autor de mais de 20 livros sobre manuscritos, fotografias e obras de arte brasileiras.
A paixão do menino que escrevia cartas a figuras famosas para receber as suas assinaturas de volta continua viva no olhar do coleccionador, que ainda sonha ter nas mãos alguns pedaços de papel onde se escreveram pela primeira vez passagens importantes da nossa história comum. Alguns o dinheiro poderá comprar, outros não.
Adoraria, por exemplo, ter um documento do Infante Dom Henrique, ou algum escrito de Camões. Do grande poeta da língua portuguesa não existe, que se saiba, “nenhuma linha comprovadamente na letra dele”.