– [Nossa Senhora] disse-me que vou para Lisboa, para o hospital; que não te torno a ver, nem aos meus pais; que, depois de sofrer muito, morro sozinha, mas que não tenha medo; que me vai lá Ela buscar para o Céu.
In Memórias da irmã Lúcia
O quarto onde Jacinta dormia em Lisboa, há 100 anos, permanece praticamente intacto, como um altar à sua memória. Ao lado da Basílica da Estrela, no que é hoje o Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, onde um grupo de irmãs clarissas vive em clausura, existia o Orfanato de Nossa Senhora dos Milagres.
Ao lado de uma pequena cama de ferro, que mantém o colchão original, há uma cadeira com as pernas cortadas. Jacinta disse que Nossa Senhora se tinha sentado ali a conversar com ela, e que mais ninguém deveria usá-la.
No quarto mantêm-se também vários objetos usados por ela: a caneca por onde bebia água (tinha sempre muita sede), um rosário de madrepérola, um vestido azul de “menina de Lisboa”, para que não a estranhassem na capital.
O Hospital Dona Estefânia nessa época só atendia crianças de Lisboa e Jacinta foi registada como órfã na capital, a 21 de janeiro de 1920, para assim poder receber tratamento. Contudo, só a 2 de fevereiro deu entrada no hospital, por pressão do Barão de Alvaiázare, que se ofereceu para pagar todas as despesas. Como a menina teria de permanecer anónima, entrou sozinha – só o diretor do hospital sabia quem ela era. Durante o internamento esteve sempre sozinha, e sozinha morreria, 18 dias depois da sua entrada.
Jacinta entrou com uma ferida aberta no peito e já muito debilitada, depois de mais de um ano com uma infeção pulmonar, provocada pelo vírus da gripe espanhola, que matou 75 milhões de pessoas em 1918. O cirurgião Castro Freire decidiu operá-la, numa derradeira tentativa para a salvar, e retirou-lhe duas costelas. Nessa época, não havia anestesia geral e a criança foi apenas “atordoada” com um pouco de éter. Nos seus apontamentos, o médico escreveria: “Fiquei impressionado com esta menina, qualquer outra criança teria gritado ou esperneado, ela só disse ‘Ai meu Jesus, ai minha Nossa Senhora’“.
Nos últimos quatro dias da sua vida, terá comentado com uma enfermeira que Nossa Senhora lhe tinha tirado as dores, e assim se começou a espalhar por Lisboa que Jacinta de Fátima estava na Estefânia. Quando morreu, foi levada para a Igreja dos Anjos, onde foi velada durante quatro dias. As autoridades tiveram muita dificuldade em gerir as multidões que chegavam e que queriam vê-la e tocá-la.
O seu funeral esteve marcado para o cemitério dos Prazeres mas o Barão de Alvaiázare, que havia suportado as despesas do seu internamento, soube que ela havia pedido para não ser enterrada debaixo de terra, pelo que moveu mundos para a poder levar para o jazigo da sua família, em Ourém. O funeral foi pago com contribuições do povo (119 mil réis) e, no dia da sua partida para Fátima, o corpo foi em procissão até ao Rossio, seguido por uma multidão em silêncio, debaixo de chuva, como conta a investigadora Carla Afonso Rocha, que se tem dedicado a investigar os últimos dias da vida da pastorinha em Lisboa para publicar um livro – ainda há muitos segredos por revelar desses tempos, assegura.
Nesses dias começou a comentar-se o estado incorrupto do seu corpo. “A menina cheirava a flores”, como diria mais tarde o diretor do hospital Dona Estefânia, e “parecia um anjinho a dormir”.
Três décadas depois, quando o corpo foi trasladado para a basílica de Fátima, a 1 de maio de 1951, ainda permaneceria incorrupto. Algumas fotografias foram publicadas na imprensa da época, e a devoção pela pastorinha cresceu ainda mais, sobretudo entre os fiéis com crianças doentes.
No hospital Dona Estefânia, onde as obras das últimas décadas apagaram os vestígios físicos da enfermaria de há 100 anos, sempre existiram locais, muitas vezes improvisados, onde os pais de crianças internadas acediam velas e rezavam a Jacinta, pedindo a sua intervenção.
Jacinta Marto, a menina alegre que gostava de dançar e de jogar ao botão, e que Lúcia chegou a descrever como uma menina mimada e muito centrada nela própria, transformou-se depois das Aparições numa criança sofredora e sensível ao sofrimento dos outros. A irmã Ângela Coelho, postuladora da canonização, vê semelhanças à Paixão de Cristo: a sede, o peito aberto e a sepultura inicial num túmulo emprestado. “A Jacinta terá experimentado aquilo que Jesus experimentou na cruz”, considera.
A memória da sua vida, tal como de Francisco Marto (que morreu em abril de 1919), é mantida na Casa das Candeias, aberta em 2014, na Cova da Iria. A Fátima, diz Ângela Coelho, chega um número “impressionante” de pedidos de relíquias, de várias partes do mundo. Mas poucos vestígios físicos restaram desses tempos. Uma das relíquias mais acarinhadas no Santuário é uma madeixa de cabelo de Jacinta, que um sacristão cortou em Lisboa, após a sua morte.
Há cada vez mais pessoas a tocarem à porta do mosteiro das Clarissas, na Estrela, pedindo para rezar no quarto de Jacinta e o número de peregrinos junto ao túmulo dos santos Francisco e Jacinta Marto também terá aumentado, segundo o Santuário. Esta quinta-feira, em Fátima, têm lugar celebrações religiosas na Capelinha das Aparições e na Basílica da Santíssima Trindade, havendo também várias atividades com crianças. Em Lisboa, realiza-se uma conferência no Hospital D. Estefânia, às 15h00, seguida de uma missa presidida pelo cardeal-patriarca, D. Manuel Clemente.