Era uma realidade que desconhecia até final de 2018. Havia dezenas, centenas, talvez milhares de mulheres escondidas pelas ruas de Bruxelas, que recusavam qualquer contacto com associações de apoio a refugiados por causa de todas as violências que já tinham sofrido no caminho – e ninguém sabia. “Tinham medo de ser novamente vítimas de abuso. Como é que poderíamos esperar que viessem a um parque durante a noite, ter com uma miúda que lhes haveria de dizer em que carro entrar, para, ao fim de uma hora e tal de caminho, chegarem a um lugar seguro?”, pergunta Adriana, naquele tom de quem compreende perfeitamente que não o fizessem. “Estamos a falar de mulheres que já tinham fugido de casamentos infantis e de mutilações genitais. Obviamente que tinham medo.”
Mas, a partir do momento em que correu pela cidade que havia uma casa segura, onde só havia voluntárias mulheres e que se destinava a refugiadas, começaram a aparecer mais e cada vez mais pedidos de ajuda no feminino – e aí é que começou o trabalho de apoio a sério, no espaço que se tornou conhecido como Sister’s House, o mais recente projeto da Plataforma Cidadão de Apoio a Refugiados, que nasceu e cresceu em Bruxelas nos últimos anos.
“Saberem onde vão dormir, todas as noites, permite-lhes ter disponibilidade mental para, durante o dia, virem ter connosco tratar de outras questões. É quando começamos a perceber todas as violências de que são vítimas, tanto no país de onde fugiram como durante o caminho. Por exemplo, muitos homens pagam para passar fronteiras. As mulheres nem sempre o conseguem fazer e acabam a pagar com o corpo.”
Esta é uma odisseia que começou há uma mão cheia de anos, mas da qual a autora continua a falar com um entusiasmo igual ao do início. Adriana Costa Santos, 25 anos, aterrou em Bruxelas em 2015 para fazer voluntariado durante um mês, só que a crise dos refugiados e as notícias que fizeram as manchetes, diariamente, naquele verão, trocaram-lhe as voltas. Foi quando se viu pela primeira vez a dimensão da tragédia que era ter embarcações cheias de gente, num desespero imenso para tentar chegar à Europa. Esse seria o verão em que o mundo se comoveria com imagens como a de Aylan Kurdi, o menino sírio de três anos, encontrado afogado à beira-mar, numa praia da Turquia. Um pouco por todo o lado, surgiam movimentos de solidariedade, mais do que justificados pela quantidade de pessoas que chegava ao centro da Europa. “Ficar era a única coisa a fazer”, reafirma Adriana. “Só pensava no que poderia fazer para os ajudar.”
A jovem portuguesa tinha terminado o segundo ano do seu curso em Itália, em regime Erasmus, e viajara para a capital belga a convite de uma amiga que fora, entretanto, para lá no mesmo regime de intercâmbio universitário. Adriana comprara bilhete para voltar um mês depois, mas nunca chegou a apanhar esse avião. Em vez disso, a sua vida passou a girar em volta do Parc Maximilien, o nome do jardim que se estende em frente ao centro de imigração de Bruxelas, mesmo ao lado da estação de Quartier Nord, o principal acesso ferroviário ao coração da Europa.
Num piscar de olhos, aquilo tornou-se um parque com centenas de tendas e refugiados que não tinham para onde ir e que acabavam por pernoitar por ali, à espera de ter melhor sorte no dia seguinte. “Como cheguei no momento em que as autoridades ordenaram o desmantelamento do campo, fui ver que saídas havia, nas associações e ONG’s ali instaladas. Foi quando encontrei a Plataforma”, recorda, acrescentando que aquela organização já tinha conseguido abrir um espaço num edifício do outro lado do parque, que propunha acolhimento e ajuda durante o dia.
Foram os tempos em que Adriana lhes ouviu os lamentos e as vitórias, como voluntária na receção, e decidiu partilhar todas essas histórias de vida incríveis com os leitores da VISÃO. “Contar as suas vivências permitia-me criar um impacto ainda maior sobre o que se estava a passar, além de dar rosto e voz a quem estava naquela situação”, sublinha.
Para trás ficaria de vez a ideia de ir dar aulas de inglês para a Colômbia. As políticas migratórias haveriam de se tornar cada vez mais duras e extremistas, mas no final daquele ano de 2016, seria concedido asilo a uma série de sírios, iraquianos e afegãos, instalados em centros de acolhimento do estado belga. Foi quando Adriana e os outros voluntários se centraram no acompanhamento dessas pessoas, com aulas de língua estrangeira, além do acompanhamento social e jurídico. “Precisavam de ajuda para arranjar apartamento, para inscrever as crianças na escola, para conseguir equivalência dos diplomas…”
Assim chegaria 2017. Ao mesmo tempo que prosseguia o seu mestrado em antropologia na Universidade Livre de Bruxelas, e se empregou a fazer babysitting ou em restaurantes, Adriana passou a fazer a gestão e o recrutamento de voluntários. No final desse ano tudo se complicou de novo, com o desmantelamento do campo de Calais, cidade no norte de França com vista para o Canal da Mancha, conhecido como ‘A Selva’ – e para onde muitos refugiados seguiam viagem, à procura de uma maneira de chegar ao Reino Unido.
“O regresso de toda aquela gente encheu de novo o parque”, recorda Adriana, a propósito do momento que marcou o princípio dos tempos mais complicados. “Era gente que vinha do Sudão, da zona do Darfur, ali junto à fronteira com a Líbia, [onde há um conflito armado desde 2003…] E também da Eritreia e da Etiópia [que só em 2018 aceitariam por termo a 20 anos de “nem guerra nem paz”]. Além de todos os outros países em guerra no Médio Oriente.”
Com o apertar da política migratória um pouco por toda a Europa, o governo belga não ficou para trás, passando a aplicar de forma mais rígida o que diz o Tratado de Dublin, aquele que determina que os requerentes de asilo têm de o fazer nos países por onde chegam à Europa, obrigando-os a regressar a Itália e à Grécia. “O problema é que essa lei foi pensada e escrita durante as décadas de 1980 e 1990, altura em que a maior parte dos refugiados chegavam de avião, já com o visto para os países em que aterravam. Agora, em que há cada vez mais gente a fazer-se ao mar, em absoluto desespero, faz com que seja imensamente injusto serem só aqueles países a encontrar solução para tanta gente”, indigna-se Adriana. Mas o que valeu às ambições da Plataforma foi o facto de as estruturas locais não serem tão rígidas e terem aceitado acolher todas aquelas pessoas nos centros para sem-abrigo, que abrem durante o inverno. Só que mal essas portas se fecharam, as pessoas voltaram a encher o parque.
Estamos a falar de aproximadamente 700 pessoas, a dormir ao relento todos os dias, à espera de uma saída, de uma resposta, de uma solução. Todas as noites, a partir das oito em ponto, Adriana entrava pelo parque dentro à procura de pessoas que tivessem chegado, entretanto, e não tivessem para onde ir – procurando encaminhá-las para onde houvesse vaga. Como o Estado belga reagiu com rusgas diárias, de madrugada – “a polícia tinha mesmo cotas de pessoas a deter, por dia”, assinala – a única opção era ir mais cedo. “Íamos acordá-los às seis da manhã para não serem apanhados”, segue Adriana, que lhes levava ainda sapatos, casacos e sacos-cama, muitos recolhidos na iniciativa ‘sleeping bag challenge‘, que pedia a quem os oferecesse que os marcasse com o nome para que, depois, caso fosse tudo destruído durante as rusgas, pudesse apresentar queixa por confiscação de bens.
“Era o que podíamos fazer para evitar que aquelas pessoas fossem levadas para centros de detenção e depois para o país de entrada ou mesmo de origem”, acrescenta uma Adriana muito indignada por o governo belga ter mesmo feito um acordo com o governo do Sudão, já condenado por crimes contra a humanidade, para facilitar a deportação de refugiados políticos sudaneses. A única opção era vê-los fugir e deixar para trás tudo o que tinham, depois destruído pelos serviços camarários. Quem não conseguia fugir, esses, eram sempre os mais vulneráveis: os mais velhos, as mulheres e as crianças.
Seguir-se-ia então o desafio lançado pelo Facebook a pedir famílias que pudessem acolher refugiados nas suas casas, temporariamente. “Foi incrível, porque a dada altura havia mais casas disponíveis do que pessoas vulneráveis”, congratula-se Adriana, a lembrar que no primeiro dia conseguiram alojar 8 pessoas, no segundo 15, no terceiro 25, e por aí fora, até ao dia em que, ao fim da noite, o parque ficava vazio, sem ninguém lá a dormir.
Nove mil famílias tinham disponibilizado casa, outros 5 mil voluntários ofereceram-se para o transporte entre o parque e essas casas, e também para levar comida e recolher roupa. Num momento, eram 15 mil voluntários, no outro já eram 50 mil – e foi isso que permitiu fazer pressão política e conseguir ajudas.
Como quem diz, um edifício sempre aberto com um Médico do Mundo e mais 150 voluntários por semana, e também uma série de outras instalações vazias, a nível local, que poderiam ser ocupadas enquanto não tivessem outro destino. É quando surge a tal Sisters House – ou melhor, dois apartamentos no mesmo prédio, onde foram instalados 26 beliches. Fez um ano em novembro, e registou 10 mil pernoitas.
É o que explica que, em muitos casos, acabem por escolher um agressor, na esperança de que ele as proteja dos outros riscos, mesmo que depois fiquem grávidas das inúmeras violações, sem nenhum acesso a meios contracetivos ou a poder abortar. “Julgo que aqui se abre uma janela de reflexão do fator género em todas as violências da migração. Não tínhamos noção de que havia tantos fatores a ter em conta e como o medo, não o medo de quem cá está mas o medo de quem chega, é o maior de todos.”
Em várias situações, recorda Adriana, os voluntários viram-se obrigados a repetir que eram pessoas de bem e que não ia haver problemas. “Foi quando reparámos que havia quem chegasse a uma casa de uma dessas famílias de acolhimento e demorasse uma hora até tirar o casaco, o gorro e o cachecol, gesto que fazemos automaticamente quando chegamos a casa.”
Ultrapassado esse momento, nem quem ficava nessas casas nem quem abria as portas para receber quem precisava se conteve nas palavras e nos agradecimentos com que encheram a página de Facebook da Plataforma de que hoje Adriana é copresidente – e isso fez mais pelo movimento do que alguma vez se poderia supor. “Uma pessoa escreveu que, antes de as pessoas chegarem lá a casa, tinha medo por ela e pelos filhos. Mas que depois, quando se foram, embora, passou a ter medo por eles.”
Não foi a única vitória de um movimento já quase com cinco anos e que correu mundo, nas páginas da imprensa nacional e internacional – veja-se o caso do New York Times. O que mais anima hoje Adriana é saber que há, em muitos círculos eleitorais na Bélgica, muitas dessas pessoas que acolheram outras e agora são deputadas. “No início, quando tínhamos reuniões com o mundo político, havia uma enorme barreira. Hoje, a probabilidade de ser com alguém que já esteve, de uma forma ou outra, em contacto com refugiados, é bem grande. Significa que estamos a conseguir semear a solidariedade um pouco por todo o lado e essa é a única forma de mudar profundamente as coisas.”