Talvez os milhões de fãs de futebol não imaginem, mas, sempre que jogam as mãos à cabeça por causa daquele tento falhado ou choram de alegria agarrados à camisola da sua seleção pelo golo da vitória, parte da magia vivida naqueles 90 minutos (ou mais) tem muitas vezes dedo português. A lista é de respeito: três campeonatos europeus de futebol, em 2004, 2012 e 2016; a final da Taça UEFA em Alvalade, em 2005; a Liga das Nações 2018/2019; um campeonato do mundo, no ano passado na Rússia…
Ao longo de quase duas décadas, os criativos portugueses afinaram a pontaria no ataque às balizas do branding desportivo, colocando as mãos (e a cabeça) no desenvolvimento da identidade da marca destas competições internacionais de relevo. Já no ano que vem, o europeu de futebol, a realizar em 12 cidades, volta a ter traço português, da VMLY&R Branding, a agência de design do grupo que sucedeu à Young & Rubicam e que está sediada em Lisboa. Dois anos depois, em 2022, será a vez do mundial do Qatar. Neste caso, a encomenda foi ganha por outra equipa portuguesa, da Unlock Brands. “Não conheço nenhum caso onde Portugal seja reconhecido no branding a este nível e com tantos exemplos”, afirma Hélder Pombinho, que esteve envolvido na construção de alguns símbolos no nosso ideário recente – como o autocolante da Expo’98, que talvez terá colado no vidro traseiro do seu carro, ou o logótipo do Euro 2004, a bola rodeada por um coração a fazer lembrar a filigrana.
Não conheço nenhum caso onde Portugal seja reconhecido no branding a este nível e com tantos exemplos
Hélder Pombinho,
O diretor criativo da VMLY&R Branding recorda-se de que, no início dos anos 2000, os trabalhos nesta área ainda eram vistos como “coisas menores” pela indústria e atribuídos a estagiários. O primeiro Campeonato Europeu de Futebol realizado em Portugal terá sido a “lança em África”. Hélder Pombinho estava ainda na Euro RSCG quando foi chamado a Paris para “uma reunião meio secreta com uns senhores que iriam perguntar umas coisas sobre Portugal”. Só depois percebeu que o objetivo era recolher ideias para a imagem do Euro 2004, do qual éramos anfitriões. E quando, no encontro, alguém sugeriu uma cor para definir o País, Hélder indignou-se.
“Espera lá: o Euro está a ser feito e construído em Paris por pessoas que acham que Portugal é preto?!” Propôs-se apresentar ideias, e a “paixão” que os responsáveis da UEFA viram no seu logótipo, o coração dourado a envolver uma bola de futebol, foi decisiva para a escolha. Estava encontrada a imagem do “Portugal genuíno” procurada pelos europeus e dado o pontapé de saída para que o País se afirmasse neste jogo e alcançasse, oito anos depois, a consagração.

“O projeto UEFA Euro 2012 foi determinante para a afirmação da Brandia a nível internacional. A reputação foi-se consolidando com a criação de vários projetos ganhos de seguida”, assume Miguel Viana. O diretor criativo e CEO da Unlock Brands coincidiu com Hélder Pombinho na Brandia Central, grupo em que trabalhou durante 18 anos e que se tornou uma powerhouse neste domínio. “Creio que não existe uma noção real da qualidade do trabalho que aí era desenvolvido e da qualidade das pessoas que aí trabalharam ao longo de todos esses anos e de como isso marcou o mercado.
A Brandia tinha uma cultura muito própria de grande exigência qualitativa”, diz Miguel Viana.
Depois do Euro 2012, a empresa foi conquistando troféus no futebol (Europeu de 2016 em França, Mundial FIFA 2018 na Rússia, Copa América 2015 no Chile) e fora dele (FIBA Eurobasket 2015, Expo 2020 Dubai), enumera. Mas o percurso ascendente trava no início de 2017, com a entrada em insolvência da Brandia Central. Hélder Pombinho já tinha saído em 2013 para a então Y&R, ao passo que Viana deixara a companhia em 2016. “A reputação da Brandia a nível internacional no momento em que implodiu era incrível. Uma pena”, recorda hoje.
Em 2016, com Carlos Constantino, Jaime Costa e José Cerqueira, com quem tinha trabalhado mais de uma década na Brandia Central, Viana cria a Unlock Brands. E as oportunidades não tardaram a aparecer, demonstrando que a reputação destes profissionais no mercado tinha sobrevivido incólume ao ocaso da marca Brandia. Em três anos, a “superequipa” sénior que reuniram desenvolveu projetos para clientes na Suíça, em França, no Qatar, em Espanha e em Moçambique, além de Portugal, em áreas que extravasam o desporto e os eventos globais.
A reputação da Brandia a nível internacional no momento em que implodiu era incrível. Uma pena
Miguel viana
Hélder Pombinho estava exatamente na fase de reconstituir a equipa quando, em 2014, surgiu na então Y&R o convite para apresentar uma proposta de branding para o Europeu de Futebol de 2020. A sua proposta acabou por ser escolhida contra as de seis concorrentes. “O Euro 2020 foi o projeto mais complexo que já fiz e que se fez nesta área”, refere Hélder Pombinho, recordando o núcleo inicial de quatro pessoas que começou a desenvolver o projeto sobre o “tripé” criativo que norteia a construção das marcas nas competições UEFA: uma mensagem forte de futebol, uma mensagem importante de festividade e um local flavor, que garante a adaptação das mensagens aos palcos das competições. É o facto de não haver muitas marcas que consigam gerar um magnetismo tão grande e veicular uma mistura de ideias e mensagens tão positiva (paz, tolerância, esperança e confiança) que torna as marcas do desporto tão atrativas para audiências e parceiros tão diferentes por todo o mundo, explica Miguel Viana.

São projetos que duram anos, mesmo em fase de concurso. Depois do crivo da seleção e do convite a agências, vem o do concurso criativo. À Unlock Brands, no caso do Mundial de 2022 no Qatar, valeram a criatividade, as credenciais da agência e “o diálogo e o entendimento estratégico sobre o projeto, tanto para a FIFA como para o país organizador”, sintetiza Miguel Viana. Em setembro deste ano, quase três anos depois do primeiro contacto, foi conhecido o emblema oficial.
O trabalho da equipa (que já chegou a envolver 15 pessoas em domínios que vão do design gráfico ao brand voice ou ao design 3D) exigiu muitas viagens e conferências telefónicas, só na fase de criatividade, e ainda agora começou. “No tempo certo surgirão os restantes desenvolvimentos”, deixa no ar o diretor criativo.
Milhões discretos
Não é novo: as marcas associadas ao futebol geram um negócio global multimilionário. Nas duas últimas épocas somadas, a UEFA investiu mais de €150 milhões em marketing, área que contabiliza as despesas com branding e que representa metade de todos os gastos da federação com a organização de eventos. No caso da FIFA, os direitos de licenciamento de marca representaram no ano passado quase 9% de todas as receitas, cujo maior contributo vem dos direitos de transmissão televisiva dos jogos, como consta do relatório de contas da instituição.
Por cá, as empresas que ajudam a criar a identidade de marca dos eventos internacionais de futebol não falam em valores (as questões contratuais impedem-nas) e preferem destacar o tempo e a exigência associados a um processo desta natureza. “A importância financeira varia de competição para competição, consoante os patrocinadores, a audiência… Um campeonato europeu sénior tem muita relevância e impacto, e o trabalho de identidade reflete essa responsabilidade de produzir com esse nível de visibilidade. Tem de ser à prova de bala”, define Pedro Gonzalez, diretor-geral da VMLY&R Branding.
Miguel Viana repete a discrição, mas admite o peso nas contas. “Claro que tem uma importância muito grande na faturação destes anos (…) [e] permite alocar uma equipa muito sénior e multifacetada ao projeto durante um longo período de tempo.” Com ou sem divulgação de valores, o que é certo é que o peso da atividade internacional na Unlock Brands continua a crescer: de 50%, em 2017, passou para 65%, um ano depois, e este ano deve voltar a subir. As vendas de 2017 e de 2018 superaram os objetivos em 15% e 20%, respetivamente, “e prevê-se que a faturação de 2019 acompanhe esta curva de crescimento”, acrescenta o diretor criativo.
Mas, milhões à parte, o que explica a presença crescente da capacidade criativa portuguesa à mesa dos gigantes do futebol mundial – e não só? Se Pedro Gonzalez menciona a “qualidade criativa reconhecida”, Hélder Pombinho diz que não há segredo. “Há um conjunto de características que reunimos enquanto equipa, aqui e noutras empresas, que eu acho que é único. Tivemos mais vontade de ganhar do que outros. E vontade não nos falta”, estabelece, notando que muitas vezes os obstáculos até estão em casa.
No caso do Europeu de 2012, por exemplo, recorda-se que ninguém achava possível uma empresa portuguesa conseguir fazer uma marca para a Polónia e para a Ucrânia, porque havia a convicção de que as empresas locais iriam ser privilegiadas. Na Brandia, insistiu que era preciso investir no projeto e isso provou-se correto. “Muitas vezes, eles procuram uma visão de fora, de alguém que tenha distância e perceba o que há de interessante ali, naquele país”, sugere.
Miguel Viana alinha no mesmo raciocínio e aponta como “armas” as características de curiosidade, abertura, diálogo e tolerância dos portugueses. Trunfos valiosos “num mundo com cada vez mais epicentros, culturalmente distintos e onde são precisos engenheiros do intangível, que construam pontes que aproximem diferentes partes”, descreve. Mas isso não teria sido possível se a comunidade criativa não tivesse perdido o “medo” e o design e o branding não tivessem tido o desenvolvimento “exponencial” nas últimas duas décadas, em Lisboa e no Porto.
Daqui para o mundo foi um passo, desde logo porque o desenvolvimento de marcas é, pelas suas características, um processo mais “exportável enquanto serviço do que a comunicação pura e dura”, realça Viana. “Consegue projetar o trabalho a uma distância incrível”, corrobora Pombinho. “Não podemos limitar-nos a uma questão de dimensão. O nosso mercado é demasiado pequeno para aquilo que é a nossa ambição. E as pessoas que cá vivem têm a obrigação de não pensarem em limites geográficos.”
Daí que continuem a chutar a bola para longe. A VMLY&R Branding trabalhou o universo visual, o broadcast e os produtos licenciados do Campeonato do Mundo de Basquetebol da China deste ano. Antes, criou para a UEFA o logótipo e o troféu da Nations League (foto em cima, à esquerda). A Unlock Brands também tem em mãos vários projetos para a FIFA (como a criação da marca The Best Fifa Football Awards), fez o branding do campeonato mundial feminino de 2018 de basquetebol da FIBA e, fora do desporto, foi escolhida como agência oficial da Expo 2021 Doha Qatar. Não tarda, deverá ser conhecida nova encomenda da FIFA para desenvolver a marca de outro evento mundial, para já em segredo.
Na VMLY&R Branding, que está a trabalhar em quatro torneios internacionais (dois de futebol e dois de basquetebol), a discrição também é a palavra de ordem. “Acabei de saber agora por email que ganhámos um deles”, anuncia Pedro Gonzalez enquanto decorria a entrevista com a EXAME. “De basquetebol”, precisa, guardando para si o resto do jogo. Bola ao cesto para Portugal. Mais uma.