Em setembro, um anúncio televisivo despertou a ira dos telespectadores australianos, que resolveram endereçar reclamações à entidade reguladora da publicidade do seu país por uma marca de produtos de higiene feminina ter decidido representar a menstruação com a cor… vermelha. Habitualmente, a publicidade ilustra o sangue menstrual com um eufemístico líquido azul. As queixas incluíam acusações de “mau gosto”, mas também por “humilhar as mulheres ao expor um assunto privado” ou por “obrigar as crianças a verem uma mulher a sangrar”. Mas a entidade reguladora decidiu que “representar sangue numa campanha sobre produtos de higiene feminina não vai contra nenhum princípio ético”. Afinal, “trata-se de uma reconstituição rigorosa de uma ocorrência física natural”.
“Continua a haver imenso prurido em falar sobre a menstruação”, defende a eurodeputada Marisa Matias. A vergonha, alerta a ex-candidata à Presidência da República, complica o combate à desigualdade. A dificuldade de acesso a produtos de higiene feminina é um valioso indicador de pobreza, mas esse drama é muitas vezes vivido em segredo. “Há Estados-membros onde algumas meninas não podem sair de casa durante o período, porque as famílias são tão pobres que não se podem dar ao luxo de comprar pensos higiénicos ou tampões. Ninguém imagina que isto acontece na União Europeia (UE), pensam que é só nos países em vias de desenvolvimento”, nota.
A eurodeputada do Bloco de Esquerda foi a relatora de um documento, aprovado no início deste ano pelo Parlamento Europeu, que defende a eliminação da discriminação de género ao nível da tributação. Um dos aspetos mais mediáticos do relatório foi a proposta de redução do IVA sobre os produtos de higiene feminina. Em Portugal, pensos higiénicos, tampões e copos menstruais pagam a taxa mais reduzida (6%), mas no resto da UE há uma enorme disparidade na taxação, que varia entre os 5% e os 27% de IVA. “É chocante haver países onde os produtos de higiene feminina são taxados na mesma medida do tabaco ou do café, apesar de serem bens de primeira necessidade. A menstruação não é uma opção, e o acesso a estes produtos é uma questão de saúde pública e, claro, de dignidade”, sublinha.
Emoji envergonhado
Uma das cenas mais tocantes do filme Eu, Daniel Blake (2016), do realizador inglês Ken Loach, mostra uma mãe solteira a ser apanhada a roubar pensos higiénicos no supermercado. Nos meses seguintes à estreia, aumentaram as doações de produtos menstruais a instituições sociais no Reino Unido. Uma em cada dez jovens britânicas, entre os 14 e os 21 anos, não tem acesso a estes bens, de acordo com um estudo divulgado, no ano passado, pela ONG Plan International UK.
De acordo com esta organização de defesa dos direitos das raparigas, o estigma em torno da menstruação leva a que as meninas não peçam ajuda e também prejudica a doação de produtos de higiene feminina. Por isso, há dois anos, a Plan International UK lançou-se numa contenda em defesa da criação de um emoji (símbolo gráfico que simboliza palavras ou conceitos) que representasse o período, com o intuito de passar uma mensagem simples: “A menstruação não é vergonhosa.”
Curiosamente, a entidade responsável pela aprovação dos emojis, a Unicode Consortium, rejeitou a imagem escolhida através de uma votação pública: umas cuecas com duas gotas vermelhas. Seria aceite, já este ano, uma muito mais anódina gota de sangue. “Se há emojis para tudo o que faz parte da nossa vida quotidiana, então também deve haver para o período”, reitera a presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), Maria José Magalhães. “Um emoji pode ser importante porque é sinal de maior diálogo entre os mais novos sobre este tema e acaba por ajudar a combater o tabu”, acrescenta a também docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Afinal, estima-se que mais de 90% dos internautas utilizem estes símbolos nas suas conversas digitais.
Habituada a ver as amigas a pedirem um penso higiénico ou um tampão em surdina às colegas – “como se fosse um crime”– quando se esqueciam deles em casa, Inês Barge decidiu fazer uma tese de mestrado sobre a gestão da higiene menstrual e a perceção das mulheres relativamente aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Acredita que os resultados do estudo representam apenas uma visão parcial da realidade, já que das 160 entrevistadas, 86 eram licenciadas. “A maioria diz falar sobre o tema e, à partida, já ninguém acredita nos mitos de antigamente, como não cozinhar ou não lavar o cabelo quando se está com o período, mas isso não significa que o preconceito tenha desaparecido”, afirma a jovem de 25 anos.
Uma das recomendações saídas da investigação é a existência de dispensadores automáticos de pensos higiénicos ou tampões nas escolas. Inês Barge lamenta que na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde tirou a sua licenciatura, os produtos de higiene feminina deixados nas casas de banho pelo Coletivo Feminista de Letras tenham sido recentemente vandalizados. A denúncia foi feita, nas redes sociais, pelo grupo de estudantes que descreve “a brutalidade com que destruíram caixas [de pensos higiénicos e de tampões], rasgaram cartazes e roubaram material angariado” no âmbito da campanha pela equidade menstrual. “Uma prova de que existe tabu”, remata Inês Barge.
O silêncio tem implicações na saúde. “Ainda é preciso esclarecer as mulheres que toleram queixas que não tolerariam se estivessem mais bem informadas. Algumas têm fluxos muito abundantes e muito frequentes, o que pode causar anemias, e se não souberem que não é normal, põem a sua saúde em risco. Muitas vezes resignam-se porque a avó e a mãe também sofreram”, constata a ginecologista Marcela Forjaz.
A sexóloga Marta Crawford sublinha que o preconceito em relação à menstruação tem consequências muito mais graves sobretudo nos países em desenvolvimento: “Em muitos locais, ainda é considerada uma doença e tem um forte impacto no abandono escolar.” De acordo com as Nações Unidas, uma em cada dez meninas na África Subsariana falta às aulas, quando está com o período. O preconceito contra a menstruação também faz vítimas. Recentemente, uma estudante queniana de 14 anos suicidou-se depois de ser ridicularizada na sala de aulas por estar com o período. O Nepal, só no ano passado, proibiu a prática do chaupadi, que obriga as mulheres a dormirem na rua ou em abrigos durante a menstruação para preservar a pureza do lar, deixando-as suscetíveis a doenças, violações e mesmo à morte. Em 2016, uma adolescente de 15 anos morreu neste contexto.
Na Índia, a discriminação também é avassaladora, mas uma máquina que produz pensos higiénicos biodegradáveis está a mudar a vida de muitas indianas na vila de Hapur – não só combate o abandono escolar como torna as mulheres que vendem os pensos higiénicos financeiramente independentes. A história valeu o Oscar de Melhor Curta-Metragem Documental ao filme Period. End of Sentence, realizado por Rayka Zehtabchi. Cinema sangrento que não deve meter medo a ninguém.