A perturbação da fluência, mais conhecida por gaguez, é, segundo a Organização Mundial de Saúde, uma alteração no ritmo da fala – o indivíduo sabe exatamente o que deseja dizer, mas é incapaz de o fazer devido a movimentos involuntários da face e até mesmo do corpo, que não são controláveis pelo próprio. A gaguez caracteriza-se pelo discurso com prolongamentos, bloqueios, palavras partidas e repetições de sons, sílabas de uma palavra ou monossílabos. Por vezes, para evitar dizer palavras “problemáticas”, a pessoa pode procurar mencionar determinadas características para a definir, em vez de a dizer diretamente.
Um dos mitos mais frequentes é pensar que a gaguez pode surgir após “se apanhar” um susto, o que não é verdade. No entanto, o susto de um cão parece ter sido a causa da gaguez da psicóloga Rita Xarepe, desde os seus dois anos, altura em que começou a falar, apesar de esta versão não a convencer muito.
Lina Marques de Almeida, terapeuta da fala, refere que as causas da gaguez, de acordo com alguns estudos, podem ser “hereditárias, isto é, genéticas e ainda neurológicas e psicossociais”. Indo por partes, a causa genética é a mais frequente, “uma vez que 60% das pessoas que gaguejam têm um familiar com gaguez”. Já a neurológica “está relacionada com o aparecimento da gaguez após um Acidente Vascular Cerebral, Traumatismo Cranioencefálico ou demência, por exemplo”. Por fim, a causa psicossocial acontece quando, identificada pela família, possa existir uma certa pressão para que a pessoa com gaguez fale corretamente, o que pode desencadear “emoções negativas como ansiedade, medo e stress no momento de falar”. Ou seja, a gaguez pode trazer como consequências a timidez, baixa-autoestima e estado depressivo, mas é importante perceber que nenhuma destas causa esta perturbação da fluência.
Há alguns sinais aos quais se deve dar a devida atenção para identificar a gaguez. Se durante o discurso estiverem presentes os tais prolongamentos, repetições dos sons da fala, palavras e frases, tensão física ou esforço durante os mesmos, tremores ou movimentos involuntários “em redor dos lábios ou noutra parte do corpo, que não são tiques”, substituições de palavras ou ainda o uso frequente de interjeições, é aconselhada uma avaliação por um terapeuta da fala. Devem também ser levadas em consideração atitudes como evitar falar em público, nomeadamente no caso de crianças: na sala de aula ou até mesmo evitar sair com os amigos, a preferência pelo uso de mensagens em vez de chamadas telefónicas e ainda a elevação do timbre de voz ao mesmo tempo que se repete ou prolonga um som ou palavra. Lina Marques de Almeida alerta que “a intervenção precoce é sempre essencial”.
Dependendo da causa, a gaguez pode surgir em qualquer idade, tanto em rapazes como em raparigas. Contudo, “estudos recentes indicam-nos que 1% da população adulta tem gaguez e que em 5% da população infantil, entre os dois e os cinco anos, é comum existir uma gaguez transitória”. Esta gaguez acontece quando a criança revela sinais já mencionados anteriormente, que não se prolongam mais do que seis meses. Nos casos em que a gaguez persiste após este período, “estamos perante uma gaguez crónica”. Quanto mais tarde surgem os sinais ou quanto mais tempo uma criança permanece com os mesmos, “menor é a probabilidade de estes desaparecerem”.
Apesar de não existir uma cura para esta perturbação, “um terapeuta da fala com experiência na área tem conhecimentos e competências para ensinar métodos e técnicas que facilitem a fluência do discurso, assim como eliminar o medo de comunicar”. Lina Marques de Almeida reforça que cada caso é um caso e que “o trabalho e a linguagem têm que ser adaptados à faixa etária”.
Rita Xarepe recorreu a uma terapeuta da fala e menciona que a “relação emocional era a parte mais importante”. Já os exercícios que realizou – “ler, gravar, ouvir e fazer a contagem das vezes que tinha gaguejado” – “eram muito chatos”.
Além da pessoa com gaguez, é também importante ter-se o cuidado de “trabalhar com a família e a comunidade escolar, a fim de dar indicações que ajudem a pessoa e que favoreçam a sua comunicação”. Desta forma, a “mudança de comportamentos por parte de todos é essencial para o sucesso da intervenção”, acrescenta Lina Marques de Almeida.
A psicóloga refere que, quando era mais pequena, o apoio das pessoas que a rodeiam “era bastante importante”. “Hoje em dia claro que é simpático, mas já não é extremamente importante porque agora já não preciso tanto que o outro me aceite”.
Por outro lado, Rita Xarepe acredita que a época escolar é a mais difícil para um gago, apesar de, no seu caso, nunca ter sido gozada ou mal tratada pelos seus colegas e ainda ter ganho um concurso de leitura. No entanto, “era um sofrimento porque eu não queria falar, tinha vergonha. Quando os professores me mandavam ler ou perguntavam qualquer coisa, eu suava e ficava muito ansiosa, mas os meus colegas sempre foram cuidadosos, carinhosos e protetores”. Rita defende que “na escola devia haver diálogo, falar-se sobre a gaguez e perceber-se um bocadinho o que se pode fazer. Se houver uma atitude por parte do adulto mais calma e paciente, em vez de querer um ritmo acelerado, isso ajuda muito”.
A gaguez pode, de facto, ser um fator limitativo na vida interpessoal e profissional, na medida em que as pessoas sentem, por vezes, a necessidade de evitar falar em público ou até recusar propostas de emprego, podendo mesmo levar ao isolamento. Para a psicóloga foi e é um processo com que lida e lhe afeta todos os dias – “Lembro-me desde cedo que, dentro de mim, sempre havia duas forças. Uma era ‘não vou fazer porque sou gaga’ e a outra que ia contra isso. Lembro-me de fazer coisas para ultrapassar, como falar em público. Não que eu quisesse ou gostasse, mas era um desafio a mim própria”. Rita Xarepe confessa que hoje em dia já não a afeta tanto porque não deixou que a gaguez se tornasse algo que a limita ou que não a deixa fazer o que quer – “A gaguez ajuda-me a gostar de arriscar. Sem duvida que foi algo que me ensinou a arranjar estratégias para lidar com a minha vulnerabilidade. Orgulho-me desse processo e faz parte da minha história”. Há pouco tempo foi convidada para falar na televisão e aceitou, embora fique nervosa, no fim fica orgulhosa e adora falar – “se eu não fosse gaga, não me iria calar”.
De modo a facilitar a comunicação com a pessoa, não deve pedir para que esta fale mais devagar ou para ter calma. Assim como dizer para respirar fundo ou pensar antes de falar. Outros erros comuns que podem levar à frustração da pessoa com gaguez passam por terminar as suas palavras e falar no lugar dela. Manter o contacto visual e esperar que a pessoa acabe de falar, estando atento ao seu conteúdo e não há forma como é dito, são alguns conselhos que ajudam. “As pessoas cometem erros quando falam com gagos porque não sabem como reagir”, diz a psicóloga. “Imagino que do outro lado não seja fácil estar a ouvir e não dizer nada. Mas a sensação que dá é que a pessoa não tem tempo para ouvir ou não quer ouvir e quer despachar-se” – acrescenta. Com o filho de sete anos, que também apresenta períodos de gaguez, Rita faz sempre o esforço de o ouvir até ao fim e pede sempre para deixarem que o filho acabe de falar.
Já com a entrevista de Joacine Katar Moreira, candidata às eleições legislativas pelo partido Livre, para a rádio Observador, na semana passada, Rita argumenta que “isso mostra como a gaguez está tão pouco exposta, falada e aceite. É pena que se tenha tornado viral como se um gago fosse um ET, um bicho diferente que tem de ser observado”.