Baixinho, de blaser azul coçado e fora de moda, saco de pano na mão, olhar irrequieto. À superfície, é assim Sydney Brenner. Filho de um sapateiro, para os biólogos é um verdadeiro ídolo. O exemplo do investigador limpo que apenas se compromete com a curiosidade científica. Precisamente por isso, por não fazer lobi diz-se no meio, tardou tanto em receber o Nobel. Aos 79 anos, continua a ter vontade de fazer «muita coisa» e deixa implícito que conta com a contribuição portuguesa para resolver a questão mais importante da Biologia: a forma como os genes se relacionam com aquilo que somos.
VISÃO: O seu nome está associado ao Instituto Gulbenkian de Ciência e à Fundação Champalimaud. Tem acompanhado, portanto, a evolução da investigação científica em Portugal. Como a caracteriza?
SYDNEY BRENNER: Foi uma evolução extraordinária. Há muitos e bons jovens investigadores, alguns que inclusivamente regressaram a Portugal depois de uma carreira lá fora. Há muito boa Ciência a ser feita cá e que é reconhecida a nível mundial.
O estudo das Ciências da Vida exige cada vez mais equipamento e caro. Acha que, por isso, ficará forçosamente entregue aos países ricos?
É verdade que exige equipamentos caros. A ciência em geral cresce nesse sentido. Estudar o cérebro sem abrir cabeças, recorrendo à ressonância magnética, é caro. Contudo, se compararmos com a Física, que precisa de aceleradores e telescópios, nem é muito. Mas acredito que é possível estudar as Ciências da Vida sem utilizar qualquer tipo de equipamento. Basta usar o cérebro.
Há lugar para a intuição na Ciência?
Claro! Ou melhor, para a intuição informada.
E é importante que os estudos biológicos se apresentem de forma organizada e bonita?
Só a Matemática é perfeita. A Biologia é bonita apenas em retrospectiva. Na verdade, enquanto estamos a trabalhar nela, é bastante confusa.
Os biólogos esperavam que recebesse o Nobel há muito mais tempo. Acha que o prémio chegou demasiado tarde?
Não. É bom que chegue tarde. Sabe porquê? Porque antes podem receber–se todos os outros prémios [risos]. Mas também é importante que não aconteça demasiado tarde, de forma a que nem se chegue a recebê-lo.
Continua a trabalhar. O que gostaria ainda de fazer?
Muita coisa. Desde que deixei o «trabalho normal», pude fazer pesquisas que me pareciam importantes e para as quais não tinha tempo. Por exemplo, estudei o fugu [peixe altamente venenoso, bastante apreciado na culinária japonesa].
Como se lembrou de estudar esse peixe?
Sabia que ele seria importante havia um artigo da década de 60 com a medida do ADN do fugu.
E o que há de tão especial nesse ADN?
É pequeno.
Procura sempre a simplicidade?
Busco a melhor forma de ajudar a resolver a dificuldade. A natureza auxilia–nos a fazer Ciência, porque nos oferece coisas muito simples que preservam a essência. E isto significa que se pode estudar de uma maneira mais fácil e clara. Escolher o organismo certo para se investigar é importantíssimo.
Procura a simplicidade para perceber a complexidade?
Sim. É pela simplificação que a natureza lida com a complexidade. Digo sempre: a complexidade é como os impostos se não se pagar, vai-se para a cadeia. A evasão é um crime. Mas há formas legais de os contornar. Como é que podemos evitar pagar o imposto – trabalho, tempo – sobre tudo o que queremos descobrir? Procurando nos organismos mais simples. E foi isso que fizemos. Conseguimos encontrar naquele peixe todos os genes humanos, por uma pequena percentagem do custo.
Custa a acreditar que o fugu esteja tão relacionado com os humanos... Todos nós já fomos peixes, quando crescíamos na barriga das nossas mães. Tínhamos guelras e nadávamos em água. É claro que depois nos modificamos, mas a ligação com o peixe mantém-se. O cérebro ou o sistema imunitário são semelhantes.
Continuamos sem saber o que faz a grande diferença entre o Homem e todos os outros animais...
Continuamos sem saber o que faz a diferença entre o que quer que seja. Este é o grande desafio das Ciências Biológicas. Há uma descrição interna nos genes. Não estou a dizer que seja um programa é antes uma descrição em linguagem de ADN. E é claro que a não conseguimos ler. Aí está escrita a diferença entre você e um chimpanzé, e deveremos ser capazes de dizer «isto faz isto, e aquilo faz aqueloutro». Perceber como os genes estão relacionados com o fenótipo, aquilo que somos, ainda é o problema fundamental na Biologia.
Mas conhece-se o processo: ADN, ARN, proteínas... Podemos ser tão generalistas ao ponto de nos tornarmos inúteis. Não é uma explicação. Faltam-nos os pormenores. Quero saber em pormenor como se faz um rato. Não como se faz um animal peludo. E estamos muito longe de saber fazê-lo.
Alguma vez chegaremos lá?
Penso que será possível compreender a linguagem dos genes e saber qual a diferença entre duas pessoas. Apesar de os seus genomas serem tão parecidos.
É o que espera da Biologia do século XXI?
Sim. Devemos ser capazes de perceber isso e reconstruir o passado. Perceber o que os nossos antepassados partilhavam com os nossos primos chimpanzés.
O que lhe deu mais prazer descobrir, em toda a sua carreira?
É difícil escolher. Talvez tenha sido trabalhar em genética molecular e estabelecer as bases genéticas do código. Deu-me muito prazer intelectual. Fizemo-lo sem qualquer equipamento sofisticado. Houve a possibilidade de começar um novo ramo de investigação e agora tenho milhares de «netos». São seis ou sete gerações de académicos, brilhantes e talentosos.
Preocupa-se muito com a Educação Científica…
Claro. Acredito que a educação liberal do futuro devia ser sobre o Homem, o que ele fez, como ele é. Tudo o que vemos hoje resulta da sua actividade. Podemos integrar História, Cultura, Antropologia. O Homem devia ser a base da Educação. Penso até que devia haver uma licenciatura em Ciências Humanas, que incluiria todos estes temas. E que todos os políticos teriam de terminar com distinção esta licenciatura, antes de poderem tomar posse.
Por vezes, a investigação é condicionada por questões éticas, em torno, por exemplo, da informação genética de cada um, ou por constrangimentos financeiros…
A forma como o financiamento é atribuído condiciona automaticamente. Torna a investigação convencional. Ninguém quer arriscar. Quer se trate de financiamentos privados ou governamentais, todos querem ter a certeza de que a investigação vai dar resultados imediatos. E as coisas verdadeiramente novas e inesperadas ficam limitadas.
E isso acontece em todos os países?
Sim, sim. Quanto às questões éticas, pessoalmente não acredito que alguma coisa nesta tecnologia seja tão nova que não se resolva pelos métodos que já conhecemos em parte, o senso comum ou a ética médica. A privacidade já é preservada mediante esta ética. E não vejo por que razão terá de ser diferente com a privacidade genética.
Está a defender que tem o mesmo valor conhecer a sequência genética de alguém ou saber que essa pessoa sofreu uma pneumonia aos 14 anos?
É preciso perguntar qual o benefício para a pessoa. Se não houver vantagem, se não pudermos oferecer ajuda mediante a informação genética, então, esta não serve de nada. Mas acho que as seguradoras, por exemplo, não têm nenhum direito de conhecer, através dos genes, o futuro de cada pessoa. Já conhecem o passado e o presente e é suficiente. Só o indivíduo tem direito à informação genética.
Quem seria o gestor dessas informações?
Devem fazer parte da ficha médica de cada um. Em que circunstâncias se podem tornar importantes? Imaginemos que digo a uma pessoa: «Parece que vai ter alguns problemas aos 60 anos. Mas se fizer exercício, reduzir a ingestão de gorduras e mudar o estilo de vida, em vez de ter uma probabilidade de 70% de sofrer um ataque cardíaco fatal, ela será apenas de 5 por cento.» Por se tratar de informação genética, é preciso incluir os dados familiares. E, claro, as informações de outras pessoas com as mesmas doenças. Mas não acredito no acesso indiscriminado a estes dados. É um disparate pensar em incluir as informações genéticas num cartão de crédito. Uma vez perguntaram-me: «Porque não posso clonar-me e guardar a cópia para peças sobresselentes?» Respondi: «Cuidado, a cópia pode querer usá-lo para peças sobresselentes.» Ninguém pensa nas cópias como uma pessoa. E isto é a primeira coisa que temos de fazer: distinguir entre genomas e pessoas.
Onde estão os embriões nesta discussão?
Se um embrião tem a capacidade de se tornar numa pessoa, então há que tratá-lo como tal. Caso se descubra qualquer coisa que o impeça de se tornar numa pessoa completa, aí os pais podem optar por outro embrião. Um dia, perguntaram-me: «Não deveríamos ter regras para governar a actividade dos cientistas, de forma a que não cometam fraudes?» Como é possível ter regras, com penas e tudo? É um disparate! A Ciência, por definição, é integridade. É verdade.
Mas também acontecem fraudes…
Claro. A melhor forma de as evitar é com um sistema aberto no laboratório, onde toda a gente, desde o professor mais conceituado ao aluno mais jovem, seja considerada igual. Sem isso, assistimos ao que aconteceu na Coreia [o cientista Hwang Woo-suk publicou artigos com falsos dados sobre experiências de clonagem]. Contudo, esse cientista foi denunciado por um grupo de jovens investigadores.
Não fazem falta regras na clonagem?
A questão persiste: quem pode beneficiar? Por vezes, conseguimos ter os mesmos resultados utilizando células animais. É preciso ter uma perspectiva equilibrada. Há pessoas que se opõem às células estaminais simplesmente pelo modo a partir do qual elas são obtidas morte ou danificação de um embrião. Se há formas alternativas de obter células estaminais, e já foi provado que é possível conseguir espermatogónias a partir dos testículos e que estas podem dar origem a músculo, devemos optar por elas.
Os físicos procuram um força unificadora, que integre todas as outras já conhecidas. Os biólogos também buscam algo semelhante?
A grande essência da Biologia é a Evolução, a continuidade da vida. E precisamos de a entender. Se andarmos 6 milhões de anos para trás, os humanos parecem-se com macacos.
Teremos um aspecto diferente no futuro? É interessante. O que acho é que parámos a evolução biológica.
Isto é definitivo?
Há forças selectivas que podem alterar tudo. Uma delas é a doença. E talvez a solução para o mundo seja que todos nos tornemos pigmeus, uma vez que os recursos estão a esgotar-se. Sabemos que já aconteceu. Daqui a mil anos, a selecção talvez favoreça os humanos mais pequenos e que consomem menos recursos. Os gigantes não têm futuro.
Fundou um instituto com fundos provenientes da Philip Morris. Num país como os EUA, onde as tabaqueiras têm péssima reputação, como foram as reacções?
É verdade que houve comentários do género: «O instituto foi montado com o sangue dos americanos.» Mas não tenho problema nenhum com isso. Muitas vezes as pessoas não estão satisfeitas com o que fazem os governos e, apesar disso, aceitam dinheiro estatal. O importante não é de onde vem o dinheiro, mas o que se faz com ele. Aceitei o financiamento dentro das minhas condições. A McDonalds também mata pessoas e ninguém se nega a aceitar o seu dinheiro. Em resultado da minha posição, perguntaram-me se eu dirigia uma lavandaria [no sentido de lavagem de dinheiro]. Respondi: «Não, não; uma limpeza a seco.»
ASSINE AQUI A VISÃO E RECEBA UM SACO DE OFERTA
![banner rap](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/14029796banner-rap.jpeg)