Dominique Wolton é uma máquina a falar. Responde a tudo, inclusive àquilo que não lhe perguntámos, baralhando (e bem) qualquer alinhamento jornalístico. Comenta as notícias do dia, explica os novos movimentos sociais, opina sobre o rumo dos homens, dos países, do mundo e, sobretudo, lança o alerta: “O meu trabalho é dizer não.”
Deu uma entrevista à VISÃO em 2009. O que mudou nestes dez anos?
O que, nestes dez anos, se impõe é o desenvolvimento incrível da internet com uma ausência total de reflexão crítica. O que existe, isso sim, é uma espécie de adulação, um sentimento absoluto de liberdade. É a primeira vez que há assim tão pouca reflexão sobre a revolução técnica, económica, humana. Por exemplo, com a questão nuclear, houve crítica a favor da ecologia, mas agora não existe qualquer crítica sobre a internet. Tudo está bem, tudo é encarado como progresso, tudo é entendido como suprema felicidade. E, quando alguém aparece a criticar, é logo apelidado de velho, diz-se que tem fobia da tecnologia.
Continua a ser um cético, um apocalíptico, na linguagem de Umberto Eco?
Enquanto investigador, o meu trabalho é dizer não. A técnica jamais substituirá o Homem. Pode ajudá-lo, mas nunca poderá substituí-lo. Por outro lado, só agora começamos a ver, muito lentamente, que a emancipação da internet se transformou numa potência financeira gigante com o GAFAM [acrónimo de Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft]. É interessante que, em vez de estarmos a regulamentar o GAFAM pelo lado da democracia, o estejamos a controlar pelo lado fiscal. Mas, além dos impostos, também é a vida privada, a vida pública, as fake news, a democracia.
Tem dito que, para lá da informação, é preciso que haja comunicação.
O que aconteceu na questão da internet foi a fusão entre a performance técnica, que é formidável, e o desejo de comunicação humana. Acreditamos que a técnica vai assegurar a comunicação – e não vai. Trata-se de um problema político. A minha batalha consiste em dizer: OK pela performance técnica, OK pela informação, mas toda a questão da comunicação permanece em aberto. Uma pessoa pode ser um excelente internauta e, simultaneamente, ser um autista. Há anos que o digo: a internet é perfeita do ponto de vista da comunicação técnica, mas os homens não vivem sem sentimentos, sem visões, sem sonhos, sem representações. É preciso repensar tudo isto e sair do fascínio pela técnica.
E como se faz isso?
Em primeiro lugar, é preciso que os governos deixem de estar fascinados com o GAFAM. Em segundo lugar, é preciso estar consciente de que a técnica nunca tornou ninguém feliz. Em terceiro lugar, é preciso fazer uma reflexão crítica da educação.
Quem deve fazer essa reflexão?
Todos. Os jornalistas, desde logo. Os jornalistas deviam ser os primeiros a gritar: Bullshit! Em vez disso, todos os dias, logo de manhã, são os primeiros a perguntar: “E hoje o que há na internet?” Existe uma confusão total entre informação e expressão. Mas as elites também têm uma grande responsabilidade, bem como os homens políticos, que estão perdidos. Praticamente todos os projetos políticos só existem na internet: como é a internet para a educação? Como é a internet para a saúde? Como se tudo isto fosse a felicidade.
E as escolas, o que devem fazer?
Devem ensinar a fazer uma reflexão crítica sobre as forças e as fraquezas da internet. Olhar para os livros, olhar para os papéis, ouvir a rádio, ver a televisão. Parar de dizer que a rádio e a televisão são velhas e que, pelo contrário, a internet é que é o progresso. A globalização permite- -nos ver tudo. Mas não é por vermos tudo que vamos tudo compreender. As escolas devem recordar a dimensão humana da comunicação. Se não há comunicação, não há educação – que é a atividade mais importante do mundo, na medida em que é através dela que cada geração transmite a História da Humanidade à geração seguinte. A educação é uma questão de amor. Um professor nunca é perfeito, é um ser humano. Um computador é perfeito, é uma técnica. E nós não amamos a técnica, amamos os homens e as mulheres. Por isso é mais fácil de ser um bom internauta do que ter relações afetivas ou amorosas.
O amor será sempre o mais importante.
Claro que sim [risos]. É o amor que nos mantém vivos. A sedução através da internet é divertida, mas não é isso que me interessa. O que me interessa é o momento em que um homem e uma mulher, duas mulheres ou dois homens, se encontram no café pela primeira vez. E que dizem: que chatice, ele (ou ela) é mais gordo (ou mais gorda) do que eu pensava. Aí, só há duas soluções: ou bem que falhamos, ou bem que começamos a falar [risos].
O que se está a passar em França, com o movimento dos “coletes amarelos”?
É um bordel, é complicado, ninguém percebe nada. As elites não percebem o que se está a passar. Uma vez por semana, nos últimos dois meses, a França faz uma pequena revolução. É algo completamente louco. Todos os sábados, à tarde, não às 14 horas, mas entre as 17/18 horas e até às 22 horas. Estamos completamente loucos. Do meu ponto de vista, o mais importante no tema dos “coletes amarelos” é a solidariedade humana, a felicidade que as pessoas têm em se encontrarem, em estarem juntas, faça chuva ou faça sol. Os “coletes amarelos” não falam sobre internet, é pura mitologia revolucionária. Penso que vão originar bebés [risos].
Qual é a diferença entre as manifestações dos “coletes amarelos” e as dos excluídos
da globalização?
Os “coletes amarelos” mentem. Eles dizem que são os mais pobres, mas isso não é verdade. Não estão lá os mais pobres, os negros não estão lá, não se trata de um movimento multicultural. São homens, sobretudo brancos, integram poucas mulheres, que pertencem à classe média baixa; são um pouco racistas e não muito democratas, muito franceses. Para um investigador como eu, é comovente observar que existe muito desespero nisso tudo. A democracia tem de perceber isto. Penso que os “coletes amarelos” dizem duas coisas importantes: em primeiro lugar, as elites têm de parar de nos menosprezar, elas são muito arrogantes e nós não somos idiotas; em segundo lugar, não conseguimos viver com mil euros por mês.
Os “coletes amarelos” são o resultado das redes sociais?
Os “coletes amarelos” são um problema clássico da política: não percebemos porquê, mas a dada altura tudo explode. As redes sociais tiveram um papel, mas, a meu ver, a importância dos “coletes amarelos” não são as redes sociais, é a redescoberta da solidariedade.
Aprendemos que mais informação conduz a melhores cidadãos que tomam melhores decisões. Ainda é assim?
Esse foi o nosso grande erro. Nos últimos 50 anos convencemo-nos de que mais técnica significaria mais mensagem, mais verdade, mais informação, mais democracia. O que, pelo contrário, temos é mais fake news. Descobrimos que a abundância da informação não nos trouxe melhores democracias.
A hipótese estava errada.
Enganámo-nos. De há cinco anos para cá, não me canso de dizê–lo: os jornalistas devem deixar de estar fascinados, devem dizer que expressão não é informação, que as parvoíces da internet não são informação, que as fake news são bullshit. Os jornalistas devem validar a informação; o resto não é problema deles. Parem de andar aos beijinhos aos internautas e às redes sociais, assumam uma certa austeridade. Aos políticos, por sua vez, digo: deixem de passar a vida nisso.
Como explica a opção dos cidadãos em elegerem líderes populistas?
Antes de condenar os populistas, temos de compreender porque eles surgiram. Nos últimos 60 anos, todos os povos eram pró-europeus.
Os ingleses só o foram durante o governo de Tony Blair.
Não creio. Não vai haver um segundo referendo, mas julgo que, se houvesse, a decisão seria outra. Os britânicos acreditaram que não gostavam da Europa, convenceram–se de que os norte-americanos os amavam e, agora, descobriram que a Europa é capaz de os abandonar. O povo britânico está sozinho, mas, como é orgulhoso, prefere virar-se sozinho.
Em seu entender, porque surgiram os líderes populistas?
O populismo surge como uma revolta do povo contra a elite arrogante. Todos os anos, em Davos, víamos a arrogância dos chefes de Estado e agora os GAFAM vão-lhes cortar a cabeça. Mas, do meu ponto de vista, o populismo tem ainda outra explicação: há 40 anos que dizemos que é preciso abrir os mercados, que a democracia nascerá em todo o lado com a globalização do comércio e da economia. E com que resultado? A China é a primeira potência económica mundial e, simultaneamente, a maior potência policial da internet, o maior totalitarismo político do mundo. Quer dizer que o discurso das últimas décadas é falso: não há uma ligação direta entre a economia e a democracia.
O que podemos esperar das próximas eleições europeias?
É preciso que os homens políticos parem com essa visão catastrofista da Europa. O que, em 60 anos, fizemos na Europa é absolutamente formidável. A Europa é a maior experiência política e democrática da Humanidade. Um dia na História houve vários países que, uns atrás dos outros, 6, 9, 10, 12, 15, 25, 27 e 28, decidiram pacífica e livremente deixar de se matar. Não nos compreendemos, não nos amamos, mas… e depois? Não há mais guerra. Temos de ser vaidosos, temos de ser orgulhosos daquilo que fizemos, mostrar o que conseguimos. Temos de deixar de ser racistas com os imigrantes, temos de parar de lhes dizer para se irem embora. Também devemos a nossa riqueza a estes povos. Penso que o povo, na sua essência, é menos antieuropeísta do que uma boa parte das elites.
Na sua opinião, a democracia não está, portanto, em perigo?
Não necessariamente. Mas, além de todas as condições que já enumerei, é preciso sermos solidários com os outros povos. O Papa tem razão quando diz que os imigrantes são nossos irmãos. Para mim, esta é a batalha política simbólica mais importante: reconhecer um imigrante como nosso irmão.
Como devemos lidar com a avalanche de informação?
Tenho uma obsessão no que diz respeito à revolução da informação. Do meu ponto de vista, há cinco profissões a salvar: jornalistas, arquivistas, documentalistas, tradutores, professores. Os jornalistas verificam a informação, os arquivistas sabem a história dos documentos, os documentalistas sabem organizá-los, os tradutores salvaguardam a diversidade linguística, os professores transmitem a História.
Podemos dispensar a Inteligência Artificial (IA) para conhecer essa avalanche de informação?
Não precisamos de mais técnica, precisamos de mais inteligência crítica. A escolha da IA não é a nossa escolha, é a escolha do software e do algoritmo. A IA é a demissão do Homem, a inteligência, por natureza, é humana. Sim, os robôs gerem maior quantidade de informação do que um cérebro. Mas o génio do ser humano é não se saber, um centésimo de segundo antes, que associação de ideias vai fazer – ou de emoções, ou de cores. A imprevisibilidade do funcionamento humano é extraordinária. A IA não é um mito, mas tolice humana.
Gostava de lhe fazer uma pergunta sobre o Papa.
Papa Francisco! Papa Francisco!
O Papa é assim tão diferente quanto a esquerda o quer fazer crer?
O Papa é compreendido em todo o mundo. É muito laico na maneira de falar e também fala de política, de imigrantes, de homossexuais… Eu já lhe disse: “Os católicos de direita não gostam de si.” E ele respondeu: “Eu sei.” “Os católicos de esquerda também não gostam.” E ele: “Eu sei.” Quem o ama são os ateus e os agnósticos.
Em princípio são os mais difíceis de convencer.
É o primeiro Papa da globalização e, quando ele morrer, veremos de facto o que ele mudou.
BI
Dominique Wolton
71 anos
Nascido em 1947, em Duala, na República dos Camarões, é um dos mais reputados cientistas sociais da atualidade.
Em 2007, fundou o Instituto das Ciências da Comunicação do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e, durante mais de 30 anos, desenvolveu projetos de investigação sobre a informação e o jornalismo, a globalização e a internet, a comunicação e a política.
Em português, estão publicados alguns dos seus livros mais importantes: Elogio do Grande Público, E Depois da Internet?, Pensar a Comunicação, A Outra Globalização.
Esteve recentemente em Lisboa para participar em Les Nuit des Idées, um conjunto de debates organizados pelo Institut Français que decorre em simultâneo em todo o mundo.
Papa francisco
Um futuro de fé (Planeta, 320 páginas, €18,85)
Intelectual laico, Dominique Wolton manteve, durante um ano, 12 longas conversas com o Papa Francisco. Desses diálogos, sobre os grandes temas do nosso tempo, resultou um livro agora lançado em Portugal: Um Futuro de Fé.